Conflitos entre pessoas que mantém algum grau de proximidade não tem nada de novo no cinema ou na produção de Yorgos Lanthimos. O grego havia deixado claro que atracaria seu barco nessa praia em “O Sacrifício do Cervo Sagrado” (2017), e um ano depois, com “A Favorita”, transpõe para a Inglaterra do princípio do século 18 a batalha mais e mais encarniçada entre duas aristocratas, uma já estabelecida na corte da rainha Ana da Grã-Bretanha (1665-1714) e outra, falida, que emulava o desejo mudo que decerto ajudara a primeira a subir tão alto, reivindicando agora sua fatia do bolo.
O caráter debochadamente satírico de “A Favorita” o distingue de todas as outras tramas reais da velha Albion e territórios adjacentes, filão que tem se consolidado com produções muito bem-cuidadas a exemplo de “O Rei” (2019), dirigido por David Michôd; “Legítimo Rei” (2018), de David Mackenzie; e, por natural, “Duas Rainhas” (2018), levado à tela por Josie Rourke, este uma referência imediata quanto à estética e a obviedade de colocar em cena mulheres famanazes desdobrando joguinhos de poder e sedução com o único propósito de jamais abrir mão de nada, obedecendo à vontade do próprio Deus. Mas o trabalho de Lanthimos excede esse limite.
O diretor incumbiu Deborah Davis e Tony McNamara de roteirizar a história, baseada num episódio verídico da vida de Ana (aqui chamada de Anne), uma das monarcas mais obscuras do Reino Unido, soberana quando da eclosão de uma das 32 guerras contra os franceses.
Olivia Colman materializa uma figura controversa, ora repulsiva, ora inspiradora de ternura, dada a achaques que poderiam ser apenas uma justa reação a violentas crises de gota ou o princípio de uma psicopatologia para a qual o tratamento levaria séculos para aparecer, glutona, misantropa e com hábitos nada vulgares, como o de criar coelhos, dezessete, um para cada filho perdido nas gestações malogradas que contribuíram para debilitar ainda mais sua saúde.
Anne é assistida de muito perto por lady Sarah Churchill (1660-1744), a duquesa de Marlborough, tão de perto que, há alguns anos, as duas se tornaram amantes fidelíssimas uma a outra, com o maldisfarçado incentivo de lorde Marlborough, o marido de Sarah, de Mark Gatiss. Conferir alguma humanidade a membros da realeza britânica é uma tarefa para gente grande, e não por acaso Colman arrebatou o Oscar de Melhor Atriz por sua versão da infausta rainha, mas a duquesa e seus lábios sempre crispados, o olhar duro, mas também quase doce e a subserviência nem tão convicta a Anne, primando por um equilíbrio perturbador, fazem de Rachel Weisz a grande estrela aqui, em especial depois da virada que justifica o enredo.
Caída em desgraça com a bancarrota do pai, um estroina que dilapidou o patrimônio da família em partidas de uíste, a nova-pobre Abigail Masham (1670-1734) bate à porta do anexo de serviçais do castelo à procura de colocação, e, uma vez aceita, começa a elaborar ideias a fim de escalar a muralha da divisão social. Ao botar a mão nua num balde de lixívia, sofre queimaduras horrendas, mas não desanima. Seu golpe de sorte vem quando sabe que das úlceras nas pernas da monarca; sai para colher ervas que sabe terapêuticas, as macera e aplica nas feridas e algum tempo depois é admitida como o nova cortesã.
Emma Stone dá um colorido refrescante àquele ambiente meio claustrofóbico, sensação agravada com o uso de lentes olho de peixe, mormente nas situações em que Colman, Weisz e Stone estão no mesmo quadro. Há mais atores no elenco, por evidente, mas essas três mulheres, cada qual miserável a seu modo, dispensam grandes comentários. Elas são o filme.
Filme: A Favorita
Direção: Yorgos Lanthimos
Ano: 2018
Gêneros: Comédia/Drama/Thriller
Nota: 9/10