O filme de meio bilhão de dólares: obra-prima com Keanu Reeves acaba de estrear na Netflix Divulgação / Lins Gate Films

O filme de meio bilhão de dólares: obra-prima com Keanu Reeves acaba de estrear na Netflix

Se o mundo fosse um imenso campo onde só florescesse o bom, o belo e o justo, ou ao menos um lugarzinho cada vez mais abafado no qual todos soubessem de suas obrigações e colocassem-nas em prática, sem esperar nada de quem quer que seja, mas vivendo apenas de acordo com o que manda a lei, figuras como Jonathan “John” Wick não seriam tão onipresentes. O assassino sob encomenda de Keanu Reeves numa das franquias mais rentáveis já produzidas pelo cinema não perde o fôlego, e “John Wick 3: Parabellum” talvez fosse a oportunidade que o diretor Chad Stahelski, responsável pelos outros três longas da série, esperava para aprofundar-se no caráter de  eminente ruína moral de seu anti-herói, socorrendo-se para tal de artifícios estéticos de deixar maravilhado o mais desatento dos espectadores.

A fotografia de Dan Laustsen, ora vívida no realce do brilho que emana dos objetos de cena, ora morbidamente apagada, sublinhando a misantropia patológica de Wick, claro, mas investindo também contra a apatia desumana de Nova York, ajusta-se ao roteiro de Chris Collins, Shay Hatten e Derek Kolstad de modo a sempre defender os métodos do paladino torto da justiça num ambiente tomado pelo caos. John Wick é o pacifista factível numa terra massacrada pela arbitrariedade como o próprio sistema.

Wick chega à Biblioteca Pública de Nova York em busca de um livro do contista folclórico russo Aleksandr NikoláyevichAfanásiev (1871-1826), e como se vê na próxima sequência, ele não tem o menor interesse nas historietas de tradição eslava do tempo do czar Alexandre II (1818-1881). O delinquente mais procurado dos Estados Unidos está a vinte minutos de ser banido, e então qualquer pessoa estará autorizada a encaminhá-lo vivo ou morto para a polícia, embolsando catorze milhões de dólares de recompensa pela façanha. 

Wick abre uma das obras de Afanásiev e de lá retira o amuleto que serve-lhe de escudo e passaporte para o mais impenetrável submundo, onde tem a chance de fugir quando começa a sentir cheiro de carne queimada. Por óbvio, nada pode ser tão simples, e Stahelski, um ex-dublê famoso por ter dado vida aos movimentos mais contraindicados de Brandon Lee (1965-1993), a quem sucedeu em “O Corvo” (1994), de Alex Proyas, sabe exatamente o que o espectador quer de seu filme e, por óbvio, de seu protagonista.

Já na abertura, Reeves supera a melhor das expectativas num balé diabólico em que se esquiva dos golpes letais de um tipo suspeito com a ajuda do tal livro, que termina manchado de sangue, como sua camisa branca e seu antes impecável terno escuro. Decerto lances assim movimentados tratam de capturar a atenção do público já de imediato, mas minudências semânticas quase indetectáveis, como Wick voltar até à estante e colocar o volume onde estava, têm um gosto especial para quem aprecia o bom cinema.

No lendário Hotel Continental, o refúgio inequívoco para matadores de aluguel, Charon, o escudeiro vivido por Lance Reddick (1962-2023), cuida do pitbull sem nome de Wick, ao passo que ele dá início à jornada durante a qual vai cruzar com a ex-mentora interpretada por Anjelica Huston, em outra referência à Rússia. Ela agora mescla sua atuação junto ao crime organizado — talvez seja a chefe de um bando que se dedica ao tráfico de armas — à direção de uma companhia de dança clássica, e paga com sangue a ousadia de ter estado com o ex-pupilo, malgrado jamais adivinhasse que ele viria.

Personagens secundários como esse são, com a licença do trocadilho, uma faca de dois gumes, ora emprestando mais vigor à trama, ora debilitando-a incontornavelmente. É o caso de Sofia, a ex-assassina encarnada por Halle Berry numa passagem dispensável ao lado de seus pastores belgas, agora gerente do Continental de Casablanca, no Marrocos. Wick vai para lá, mas não se livra da perseguição de gente como O Adjudicador, a justiceira andrógina de Asia Kate Dillon.

Escrupuloso até nos momentos mais abjetos, “Parabellum” até lembra o melhor dos westerns de Clint Eastwood, a exemplo de “Por um Punhado de Dólares” (1964), de Sergio Leone (1929-1989), ou “Os Imperdoáveis” (1992), do próprio Eastwood, transposto para um cenário um tanto pós-apocalíptico, onde, quiçá, já estejamos. O paraíso para esse Lúcifer nova-iorquino cansado de guerra ainda está longe, como se assiste em “John Wick 4: Baba Yaga” (2023), e mesmo na dita última fase da saga, Stahelski faz questão de esticar a corda um pouco mais. Pode-se suspeitar com boa margem de acerto que a franquia está longe de uma conclusão definitiva, o que nem sempre é uma estratégia recomendável.


Filme: John Wick 3: Parabellum
Direção: Chad Stahelski
Ano: 2019
Gêneros: Ação/Suspense
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.