A história de amor mais bonita do cinema está no Prime Video e vai lavar a sua alma Divulgação / Argos Films

A história de amor mais bonita do cinema está no Prime Video e vai lavar a sua alma

Anjos vivem por aí, quase a esbarrar sua natureza metafísica nos homens apressados que não têm a menor vontade de conhecê-los, deixando-se seduzir e corromper pelas humanas alegrias e dores, até que não suportam mais tamanhas indiferença e dualidade.

Essas testemunhas eternas da solidão de Deus julgam seres humanos criaturas maravilhosamente imperfeitas, capazes de chorar e de sorrir mil vezes ao longo de um único dia, satisfeitos tanto na imensidão do oceano como na reclusão de um quarto escuro, desde que possam sonhar com o amor, o sentimento que melhor os define, pelo qual podem entregar toda a riqueza que têm, certos de que estão em posse de um tesouro de valor inestimável.

Os anjos de “Asas do Desejo” são entidades atormentadas que tentam aceitar que não existem apenas para que seu Senhor jamais duvide que a humanidade é sua obra máxima, justamente pela controvérsia essencial de que é feita. No filme de Wim Wenders, eles, dotados de vontades nada cândidas, ficam como Lúcifer, expulsos do Paraíso, até que têm a chance de se reabilitar, desde que abdiquem de vez de sua tola imortalidade. Wenders e seu corroteirista, dramaturgo alemão Peter Handke, elaboram uma história cheia das metáforas cada vez mais plenas de sentido num mundo onde o amor, ao passo que continua tão necessário, é perseguido e repudiado em nome de crenças que devem ficar do Céu para baixo.

Na visão de Wenders e Handke, esses ajudantes de Deus observam as decisões humanas literalmente do alto, nos ombros dos heróis de bronze das estátuas da Berlim então cindida pelo Muro, ou dos pináculos das catedrais, quietos, instados a dirigir um olhar afetuoso a quem se acidenta e a aconselhar o potencial suicida, sem, contudo, jamais interferir no destino ou nas escolhas de quem está do outro lado.

Essa é a primeira grande pista para entender o sofrimento daqueles que observam o espetáculo da vida sem poder nele tomar parte, a rotina de que Damiel e Cassiel aprenderam a gostar, este mais do que o primeiro, é verdade. Eles imaginam como deve ser ganhar o sustento do corpo e o repouso do espírito à custa de trabalho, como a prostituta que junta dinheiro para se mudar para uma cidade mais tranquila no Sul, e tomam notas, convictos de que assim irão entender melhor o que é ser gente.

Sensações a exemplo do cheiro do café recém-coado que se toma num dia de chuva, de preferência depois de um cigarro, ou da confusão de vozes no rádio enquanto se procura a estação desejada também são um mistério para eles, mas, como se poderia imaginar, é a mais humana das emoções o que os fascina, sobretudo a Damiel, com Bruno Ganz (1941-2019) num dos melhores desempenhos da vasta carreira.

O diretor passa a centrar a narrativa num circo, lugar onde a mágica da existência funde-se ao trabalho braçal exaustivo para que o show aconteça. É lá que o personagem de Ganz, mais e mais distante do parceiro Cassiel, de Otto Sander (1941-2013), conhece Marion, a trapezista interpretada por Solveig Dommartin (1961-2007). O amor à primeira vista impossível de Damiel e Marion é trabalhado por Wenders com um lirismo duro, por meio do qual chega-se ao busílis do enredo, redivivo apenas para fins comerciais em “Cidade dos Anjos” (1998), de Brad Silberling, com Nicolas Cage na pele do anjo e Meg Ryan mudada de artista circense para cirurgiã cardíaca, como convém a uma Los Angeles escravizada pelo vil metal.

Uma vez que ninguém, nem mesmo os anjos, podem ter tudo, Damiel terá de optar entre viver essa grande paixão ou perseverar em sua tarefa celestial, da qual já não está mais tão certo. No fundo ele já tem sua resposta, tanto que, agora, é ele que precisa de conselhos; quem se encarrega do serviço é Peter Falk (1927-2011), o eterno detetive Columbo, que volta depois de uma aparição breve já na primeira cena, num papel autorreferente.

A fotografia do mestre Henri Alekan (1909-2001) mantém boa parte do filme em preto e branco, adicionando cores sempre que os curiosos olhos de mulheres e homens tomam conta da história. Por essas e todas as outras, “Asas do Desejo” é um filme tão fácil de se gostar. Seu simbolismo nada tem de etéreo ou delirante, por paradoxal que soe, pelo contrário; a impressão que fica é que Wenders tenta reacordar no público seu lado anjo, esquecido em algum lugar entre os solavancos da vida e nosso tempo de criança, quando enxergávamos para além do que a triste realidade permite.


Filme: Asas do Desejo
Direção: Wim Wenders
Ano: 1987
Gêneros: Fantasia/Romance
Nota: 10