Felicidade ainda que tardia

Felicidade ainda que tardia

Susie estranhou a si mesma. Sentia uma alegria desgraçada — no sentido bom, hiperbólico — desde as primeiras horas da manhã. E olha que o dia estava terrivelmente propício para a prática da neurastenia: o céu cinzento, feioso, quase ninguém nas ruas e uma chuva torrencial que parecia querer penetrar nos ossos. Aos 25, em certa medida, Susie pensava e agia como se tivesse 65. Pelo andar da carruagem, sua alma acabaria sucumbindo mais cedo do que o corpo. Morava sozinha. Ou melhor: dividia o apartamento com um gato de nome Harold, um persa interesseiro de pelagem cinza.

Trabalhava com a mente ligada no 220. Coisas da modernidade, do mundo globalizado, do imediatismo, dos pensamentos acelerados que não raramente atropelavam o sono. Quase sempre amanhecia com os olhos pregados na nuca. Sofria de pernas inquietas. Tinha uma diferenciada visão de futuro ao se engajar com gana em vultosos projetos financeiros duma empresa chinesa para a qual prestava serviço na bela, violenta e perdida cidade do Rio de Janeiro.

Viu-se forçada a aprender o mandarim. Um inferno. Alternava home office com trabalho presencial. Só andava de UBER. Comia comida congelada. Cheirava o próprio hálito. Mantinha a mão espalmada sob a torneira e contava até quinze para conferir se continuava a pingar. Forçava a porta da frente para certificar, pela terceira vez consecutiva, que estava mesmo trancada.

Antes de sair, contudo, filmava o fogão com o smartphone para assistir as imagens mais tarde e confirmar que não tinha esquecido alguma chama acesa. Tinha medo de tocar fogo no prédio. De inundar o assoalho com a ducha higiênica. De Harold se empolgar com passarinhos e cair do oitavo andar. De pegar Covid. De ficar grávida. De rebentar aneurisma. De sofrer um assalto. De ser presa por engano.

Aos finais de semana, apesar do estranho sentimento de culpa pelo relax obrigatório, gostava de sair um pouquinho para ver o mar, de curtir os amigos, de frequentar baladinhas, mas, a preferência mesmo era por ficar em casa sozinha e aguar as plantas e trocar a areia do gato e rever as séries televisivas e ouvir os discos de sempre repetidas vezes até furá-los.

Quem diria que as vitrolas e os discos de vinil estivessem novamente em voga. Susie já tinha tentado a ioga, a meditação, os chás de passiflora que foram receitados pela mãe. Tinha o incomum hábito de visitar museus, igrejas caindo aos pedaços e o colégio de freiras onde concluíra o ensino fundamental.

Fundamentalmente, parecia atolada no passado até o pescoço. Um passado curto demais para merecer tamanha relevância. Ainda assim, gastava tempo folheando álbuns de fotografia. Havia poucos deles hoje em dia. Tudo agora ficava armazenado nas nuvens. Inclusive, a sua cabeça. Um sujeito falou pelo rádio — quem ainda ouvia rádio, Jesus? — comovido, quase a choramingar, que era preciso agradecer a Deus todos os dias o simples fato de estar vivo e que viver era um enorme privilégio.

Controverso. Formada em mecatrônica, proveniente das ciências exatas, noviciada no ateísmo, ela preferia os ensinamentos de Einstein: tudo era relativo. Desconfiava que o locutor de voz empolada, paternalista, não teria bons índices de audiência em lugares caóticos do planeta, como a Faixa de Gaza, por exemplo, onde civis de todas as idades estavam entregues à própria sorte sob tenebrosos bombardeios diuturnos.

Andava farta de quase tudo. Das selfies. Dos likes. Dos haters. Dos anglicismos. De Lula e Bolsonaro. Da epidemia de cretinos que infestavam as redes digitais e que se rotulavam influenciadores. Quem mais a influenciava já tinha morrido. Seu pai. Seu avô. O soturno Ingmar Bergman, quem diria. Certos ícones do passado, a cada dia mais presentes nos seus momentos de mania, de hipocondria e de solitude.

O culto à vulgaridade parecia ter atingido o grau máximo na sociedade. Menos era mais. Uma merda. Nutria aquela estranha sensação de sinuca de bico que a encaçapava sempre no mesmo buraco: os excessos de ontem. Apesar de gozar de saúde de ferro, condição típica da juventude, tinha a impressão de que podia sofrer um colapso a qualquer momento ou ser portadora dalguma doença rara que ceifaria a sua curta existência. Uma juventude arranhada pela insegurança. As falanges tremelicaram.

Aproveitou o inusitado contentamento matutino para tomar nas mãos o violão bicolor que fora do seu avô e, depois, do seu pai. Herança de família, assim como o malogrado talento para o pessimismo. Tocou um repertório antiquado. Música brasileira da melhor qualidade. Assim tocava em frente uma vida de sabor impreciso como um fruto colhido cedo demais e madurado à força. De forma involuntária, inconsciente, importunava-se com as repetições enfadonhas, os métodos caricatos e os receios tolos que tornavam os seus dias mais angustiantes do que o esperado para jovens saudáveis com um futuro promissor pela frente. Nem tudo se explicava. Nem toda explicação convencia. Chovia pra dedéu. O dia estava gostoso. E isso, por si só, já bastava.

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a Revista Bula há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente Bipolar, uma antologia de contos e crônicas.