Que a rivalidade entre seres humanos e máquinas vem se acirrando de uns tempos para cá não é novidade, com a ressalva de que o homem sempre entra na briga em franca desvantagem — e por culpa de sua própria negligência, de sua própria ganância, de seu próprio julgamento equivocado quanto ao que deve ou não ter valor. Quase vinte anos depois, essas elucubrações filosóficas sobre nossa decadência frente ao avanço da inteligência artificial volta com força renovada em “The Matrix Resurrections”, deixando uma mensagem clara: será daí para a pior.
Lana Wachowski, a mais velha das irmãs transgênero que marcaram época no cinema, agora vem sem Lilly, com quem tivera desentendimentos quanto ao conceito da franquia num passado recente, embora tenha acabado por manter o DNA da trama como passou à História, um arranca-rabo progressivo e cheio de suscetibilidades entre nós e eles, exatamente como se infere do roteiro de Wachowski, Aleksandar Hemon e David Mitchell. O enredo, todavia, acusa um cansaço que o trio de criadores busca reparar com invencionices pouco harmoniosas.
“The Matrix Resurrections” é um apanhado do que acontece de mais relevante nos três longas anteriores, ardil que resulta numa sucessão dos mesmos tipos e das mesmas abordagens que resulta num déjà vu um tanto prolongado. A evolução de Matrix, a rede de programas que apartam indivíduos e dispositivos cibernéticos, isolando os primeiros num universo paralelo onde não são capazes de distinguir o ilusório do real, sai do controle, e Neo, o invencível anti-herói de Keanu Reeves, agora é tido ou como um morto sem sepultura, ou como um pária.
A bordo de Mnemosine, construída em 2274 na qual viajam tripulantes e passageiros especiais a exemplo do sábio Morpheus, que fazem a nave parecer obsoleta. Se antes Laurence Fishburne conferia algum frescor àquela entidade soturna, aterrada sob casacos pretos e óculos escuros, além, por óbvio, do par de metralhadoras, Yahya Abdul-Mateen II parece deslocado, quiçá justamente devido ao sucesso de seu antecessor. Também navegam em Mnemosine Cybebe e outros dois sintientes, estruturas híbridas, delicadas como o homo sapiens sapiens, mas imbatíveis como qualquer outra engenhoca de dois séculos e meio a frente, ao lado de Tiffany, ou Trinity, como ela prefere, o contraponto de sutileza (mas nem tanto) oculta junto a sem fim de criaturas macabras.
Certa feita, as Wachowski disseram que, com “Matrix”, quiseram botar para fora um intruso, um corpo estranho que fazia-lhes mal e as adoecia, como uma bactéria ou um vírus. Hoje, sabe-se que, no caso delas, esse inimigo poderia ser a transexualidade reprimida por mais de cinquenta anos, mas, para os outros, este é um filme de amor. Carrie-Anne Moss, ainda ótima como Trinity, e Reeves são o modelo excêntrico de romance que todo mundo esconde dentro de si, temendo ser ridicularizado. As irmãs Wachowski amalgamaram a esse desconforto o veneno da pós-modernidade e rompeu-se o gelo. O grão que não morre, como elas sabem, não vinga.
Filme: The Matrix Resurrections
Direção: Lana Wachowski
Ano: 2021
Gêneros: Ação/Ficção científica
Nota: 8/10