“A periferia é onde se revela o futuro”, teria dito J.G. Ballard, em citação muito usada e jamais confirmada. Ele foi um menino que nasceu e viveu em Shangai, na China, antes da Segunda Guerra Mundial. Conheceu na juventude o que é a vida no mundo periférico. Depois, foi para a Inglaterra dos pais. Mas está lá no Oriente a visão do mundo demolido e explorado até a última gota. Se não tivesse a experiência chinesa, é possível que Ballard não escreveria obras como “Crash” (1973) e “A Exibição de Atrocidades” (1970).
A Shanghai de Ballard era um centro da economia mundial onde se instalaram fábricas imensas de tecidos no início do século 20. Seu pai foi um administrador de uma dessas unidades de produção, bancadas por dinheiro estrangeiro. Estamos falando já de uma economia globalizada, integrada aos centros de consumo na Europa. Já é também uma China máquina de produzir desigualdades, tal como no começo do século 21. Conta Ballard em sua autobiografia “Milagres da Vida” (2008):
“Para onde quer que eu me virasse, um mundo cruel e horripilante surgia ao meu redor. Shanghai vivia principalmente nas ruas, com mendigos mostrando feridas, gângsteres e batedores de carteira, moribundos sacudindo latinhas, as chinesas elegantes com longos casacos de vison que me aterrorizavam com seus olhares, ambulantes vendendo deliciosas frituras que eu nunca podia comprar porque nunca levava dinheiro algum, famílias de camponeses famintos, e milhares de escroques e trapaceiros”.
A China contemporânea faz parte de uma periferia, o “Sul Global”, que move o mundo. Um enigma, uma vez que se opõe ao modo de vida dos Estados Unidos e da Europa (os centros de cultura, política e economia). Para entender esse universo, o leitor de hoje pode buscar um romance como “O Garoto do Riquixá” (1937), de Lao She. O livro traz a história do jovem Xiangzi que se muda para Pequim dos anos 1920 e 1930 para se tornar um condutor de riquixá, aquela pequena carroça puxada por um ser humano.
As peripécias de Xiangzi permitem um mergulho na vida de Pequim, em suas ruas, com os dialetos da fala local. Aprende-se sobre aquele tempo e espaço, numa narrativa que prende o leitor de quase um século depois. Também se pode ter acesso ao universo chinês por meio do livro “Irmãos” (2005), Yu Hua, que cria as trajetórias de Li Carequinha e Song Sang. Dois enteados, meio-irmãos, que funcionam como figuras representativas da China pós-Revolução Cultural e suas transformações brutais.
Ballard, She e Hua fornecem a seu modo um mapeamento de questões, pontos de vista e formas narrativas a respeito da China. Quem está distante do território chinês e recebe esses livros por traduções, tem acesso a um arquivo precioso. Pode valer mais do que uma série de manuais e de explicações econômicas e políticas. Um imaginário tornou-se decifrável (ou não) para leitores do mundo afora. Nesse rol, se poderia juntar o romance “As Rãs” (2009), de Mo Yan, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2012.
Geografia das letras
Tempos atrás sugeri um esboço para o mapa mundi da literatura, tomando como base a discussão a respeito da literatura-mundo, mais conhecida pelo termo “world literature”. Não se trata de definir uma estética chamada de “universal”, uma linguagem comum a ser entendida por qualquer ser humano, em qualquer época ou lugar. Além de ilusório, esse universal é um erro se desconsiderar que uma obra está fincada em seu tempo histórico e espaço geográfico.
Ao avançar na busca pelo desenho do mapa mundi, dois achados parecem ser importantes e reveladores. O primeiro deles: o ponto de vista periférico é privilegiado para a compressão de um mundo que tem a forma de um sistema. Trata-se de um sistema-mundo, interligado, com centro dinâmico e idealizado (Estados Unidos, Europa e Japão) e suas margens (o restante dos lugares). Mas se o leitor quiser mesmo decifrar essa “máquina do mundo”, deve olhar para as periferias.
Como bem disse Ballard, a periferia é reveladora. E até os centros globais passam a ter suas periferias, os espaços de horror em meio ao que se imagina ser a civilização. O autor inglês, conhecedor profundo da China, entendeu tudo ao expor a degradação da vida considerada a mais sofisticada e civilizada do planeta em seus últimos romances: “O Reino de Amanhã” (2006) e “Terroristas do Amanhã” (2003), que se passam na Inglaterra. Imagens de pesadelos que os ingleses se acostumaram a ver só no noticiário de locais distantes da Ásia e da África.
A segundo achado é estético. Nas periferias ou margens do mundo, as formas da ficção europeia se dissolvem, e outra coisa surge no lugar. O realismo dos ingleses e dos franceses, que eram os modelos canônicos da literatura, não dão conta do que ocorre no horror dos lugares distantes. A novidade pode estar na magia dos “Cem Anos de Solidão”, nos delírios das “Memórias Póstumas de Brás Cubas” ou na decomposição interior do protagonista de “Crime e Castigo”.
Na linha antirrealista, Ballard explicou bem sua escrita: “O surrealismo e a psicanálise ofereciam uma rota de escape, um corredor secreto para um mundo mais real, repleto de significado, onde os papéis psicológicos sempre em mutação são mais importantes do que o ‘caráter’ e o ‘personagem’, tão admirados pelos professores e críticos ingleses, e onde as profundas revoluções da psique importam mais do que os dramas sociais da vida diária, triviais como uma tempestade em copo d´água — ou em uma xícara de chá”.
Da colônia ao império
Para desenhar o mapa mundi da literatura, é preciso levar em conta o funcionamento do capitalismo em sua forma “combinada” e “desigual”. Um mundo interligado, com fluxos intensos, e profundamente desequilibrado em termos de recursos (dinheiro, cultura). E não se trata de um movimento do século 20. Podemos retornar ao período de 400 ou 500 anos atrás. Numa época, as coisas poderiam se chamar colonialismo ou grandes navegações. Em outras, o nome é apenas globalização.
Comecemos pelo colonialismo. Foi pelos mares que tudo circulava: pessoas, riqueza e livros. Viajantes rodavam o planeta e levavam para casa suas histórias. O autor europeu poderia ser um investidor em atividades econômicas em outras terras, como foi o caso de Daniel Defoe. Seria de sua experiência que saiu a figura de Robinson Crusoe, que tinha uma fazenda no Brasil e naufragou ao traficar escravos e muambas da África? Ali pode estar uma das primeiras criações a decifrar a literatura-mundo.
Em seu brilhante estudo, Ian Watt incluiu Crusoe entre os quatro mitos do individualismo moderno. Os outros são Dom Quixote, Don Juan e Fausto. O náufrago que, sozinho numa ilha, se torna símbolo do empreendimento dos europeus. A máquina-mundo está de corpo e alma naquele romance de 1719. Mas a ida da civilização para o Novo Mundo é a produção de barbárie em estado bruto. Tudo que havia de convulsão social, miséria, era enviado para as colônias, numa espécie de quarto de despejo dos civilizados.
O mito de Crusoe retorna à literatura contemporânea nos romances “Foe” (1986), de J.M. Coetzee, e “Sexta-Feira ou os Limbos do Pacífico” (1967) e “Sexta-Feira ou a Vida Selvagem” (1971), ambos do francês Michel Tournier. Os dois autores fazem releituras da narrativa de Defoe e colocam o ponto de vista dos bárbaros e das mulheres — figuras subalternas no livro original. Há uma viravolta de perspectiva para expor as relações do mundo da era das colonizações selvagens.
Tratamento semelhante foi dado à peça “A Tempestade” (1611), de Shakespeare. A obra é a única do autor ambientada no Novo Mundo. Os personagens Próspero e sua filha Miranda vão parar numa ilha onde estão o ser “monstruoso” Caliban e o escravo Ariel. A obra permite as mais variadas leituras, como a realizada pelo poeta martinicano Aimé Césaire, que reescreveu a história shakespeareana em “Uma Tempestade” (1967). Entra em cena na trama do autor pós-colonial a figura de Exu (“deus-diabo negro”).
No capítulo das releituras, um dos trabalhos que subverte a questão colonial é o romance “Vasto Mar de Sargaços” (1966), da caribenha Jean Rhys. Ela resgatou uma personagem secundária, mas central (Antoinette Cosway), da trama do clássico “Jane Eyre” (1847), de Charlotte Brontë. O novo ponto de vista da história passa a ser o de uma mulher, uma subalterna. No livro original, Antoinette fica presa num quarto no casarão do protagonista, seu marido. É figura da louca, desajustada, que não se enquadrou à Inglaterra.
Formas locais
Na primeira metade do século 19, a produção que mais circulou pelo mundo foi a de livros franceses e ingleses. Houve uma concentração de obras desses países que eram o centro da economia mundial e controlavam colônias em vários continentes. Em outras palavras, duas culturas que disseminavam padrões sociais e culturais, gostos sobre o que seria ou não arte. As ideias, os romances, os poemas, as peças de teatro, continuavam a viajar de navio. Pode-se até falar em rotas de navegação artísticas.
Aos poucos, porém, o fluxo externo se chocava com o chão da vida nas periferias mundiais — os lugares que não fossem domínio da Inglaterra ou da França. As formas europeias de contar histórias tinham a prova de fogo no confronto com as realidades locais. Nos melhores casos, os grandes artistas periféricos souberam deformar o ponto de vista europeu, criando suas próprias maneiras de narrar. Nasceram escritores inovadores, tendo suas manifestações artísticas inesperadas.
Lukács viu, por exemplo, uma mudança da escrita com as revoltas de 1848 que varreram a Europa. Naquele momento, teria acabado a ilusão revolucionária, o romantismo se recolhe, e o realismo não dá mais conta da brutalidade social e política. As classes alta e média partiram para cima dos pobres e pessoas insurgentes. Emblema dessa época é o romance “A Educação Sentimental” (1869), de Gustave Flaubert, que mergulha na cabeça dos franceses que viveram a ascensão e queda de uma população na miséria.
A segunda metade do século 19 é o momento da profundidade e da exposição dos traumas de 1848. Surgem os primeiros movimentos do que seria a arte moderna do século 20, mais complexa, trazendo os pesadelos da alma e sonhos intranquilos. É uma terra de escombros e viravoltas. O “novo” poderia vir de um autor de uma terra longínqua como o Brasil ou de um escritor da indecifrável Rússia. Ambos recebiam a avalanche de ideias europeias que nada tinham a ver com suas realidades locais.
Mestres periféricos
Machado de Assis e Dostoiévski rompem com as formas canônicas do século 19. Eles desfiguraram a escrita realista. Nada mais foi como antes. Algo importante: trouxeram o ponto de vista de quem está em países periféricos e varridos por ideias liberais de um lado, mas tendo de administrar uma organização social de escravidão (Brasil) e de servidão (Rússia). Tratava-se da fachada modernizante e de um fundo com exploração do trabalho no cotidiano. Isso só poderia dar em loucura, delírios e perversões.
Aquele miolo do século 19 viu o nascimento de obras estranhíssimas. Eram autores que viajavam pelo mundo e apontavam a erosão do sistema imperial, ou seja, figuravam o sistema-mundo do capitalismo. É o caso do romance “Max Havelaar” (1860), do holandês Multatuli, pseudônimo de Eduard Douwes Dekker. Ele mistura ficção e relato objetivo para retratar o pesadelo colonial da Indonésia, gerida pela Holanda. Vale lembrar que os holandeses são pais de outro desastre: o apartheid da África do Sul.
Em 1851, a literatura norte-americana teve o parto da obra-prima “Moby Dick”, de Herman Melville. Além de ser uma odisseia moderna, o livro é um grande panorama do fim da economia baseada no óleo de baleia. Também mergulha na construção da tradição religiosa de uma nação do Novo Mundo (os Estados Unidos), que se constrói por meios violentos com o modelo escravista, mas se enxerga como terra da salvação. Os nomes dos personagens de Melville saem figuras da Bíblia, a começar pelo narrador Ismael.
“O nome ‘Ismael’, é bom que se diga, não só ecoa o abandono a que a figura ungida do grande patriraca o condena em nome de Deus como traz em sua origem o sangue de uma escrava, de simbologia forte em um país que, à época de Melville, vive os estertores do modo de produção escravista — e, por isso mesmo, seu momento reativo brutal, que culminará em uma guerra cvil (1861-65) —, além de culturalmente se formar ao arrepio do contato pacífico e da troca equânime com todo aquele que não pertença, por origem de sangue, ao ‘povo escolhido’”, assinala Bruno Gambarotto, que vem traduzindo e se aprofundando na interpretação da obra de Melville.
A era do declínio imperial tem outro autor extraordinário. Trata-se de José Rizal, herói da independência das Filipinas. Ele escreveu os romances “Noli me Tangere” (1887) e “El Filibusterismo” (1891) — ainda não traduzidos para o português. Para Benedict Anderson, Rizal criou uma ficção impressionante ao dramatizar a situação colonial e impulsionar o movimento de independência do seu país. E o mais curioso: o diálogo de Rizal com o cubano José Martí. As ideias viajavam, de fato, pelo mundo de navio.
Depois do colonial
A relação colonialista entre países, culturas, pode ser considerada o tema recorrente do mapa mundi literário. Volta e meia a melhor ficção produzida numa época trata disso e encontra formas inovadoras de narrar. Tempos atrás, Luiz Costa Lima montou um fio da meada de obras sobre o que ele batizou de “redemunho do horror”. O olhar afiado do crítico brasileiro se dirigiu aos livros de Joseph Conrad e Gabriel García Márquez. Sem dúvida, os dois escritores que melhor desvendaram o mundo combinado e desigual.
Nascido na Polônia, Conrad é um fenômeno transnacional ao se tornar um escritor potente de língua inglesa. Romances como “Nostromo” (1904) e “Coração das Trevas” (1899) continuam a assombrar por expor os mecanismos violentos e destrutivos do capitalismo global. Como Melville, o autor foi um fabulador das viagens, das rotas de navegação. De suas vivências, retirou os personagens e as situações que ainda revelam o horror dos encontros inesperados de seres humanos.
Edward King publicou recentemente uma análise interessante que chama “Nostromo” de “romance histórico-mundial”, dada a capacidade da obra de sintetizar um universo que, ao mesmo tempo, está dentro e fora do capitalismo global. São como as periferias globais ou as margens de hoje, onde coisas muito contemporâneas resultam de contextos bem arcaicos de existir. É o chamado progresso que só ocorre se causar destruição, e cujo exemplo é a república imaginária de Costaguana:
“A Costaguana [de Nostromo] é representada, por um lado, como uma sociedade moderna: a narrativa narra a construção de linhas ferroviárias e outras infraestruturas financiadas por fluxos globais de capital investidos na economia mineira da Sulaco, mas isto coexiste com relações sociais muito mais antigas, herdadas de um passado pré-colonial e colonial, gerando um amálgama de formas arcaicas com outros mais contemporâneos da vida económica e social. Para Conrad, estes não eram simplesmente fenómenos políticos ou históricos, mas representavam um desafio artístico”.
Catástrofes históricas
García Márquez, por sua vez, encontrou uma forma única de narrar a vida na América do Sul. Doses do mundo rural do escritor norte-americano William Faulkner, com pitadas de cultura indígena e negra dos colombianos. Consolida-se, assim, o chamado realismo mágico ou fantástico. Trata-se da deformação da escrita europeia, a transfiguração de um imaginário. Apenas uma maneira própria, até mesmo surreal, poderia dar conta das histórias da cidade de Macondo no romance “Cem Anos de Solidão” (1967).
“Em princípio, é difícil ao leitor compreender que o romance não é nem uma ‘ilustração’ do histórico, nem tampouco o resultante da mera fantasia individual do autor. O lastro histórico do romance tem a ver com o imaginário que se constitui dentro de um determinado marco espaço-temporal. Assim, no caso de Márquez, esse marco concerne à vida sob o marco de um continente marginalizado, anárquico, instável e explorado. A partir dessas coordenadas históricas, o colombiano cria suas histórias”, observa Luiz Costa Lima sobre “Cem Anos de Solidão”.
O peso da História aparece a todo momento nos romances contemporâneos que tratam do sistema-mundo. Para Perry Anderson, essa narrativa histórica de hoje se caracteriza pelo pessimismo. As situações aparecem na forma de catástrofes. Pode ser a aventura colonial dos portugueses na África narrada por António Lobo Antunes ou os cinco séculos de violência brutal em “Viva o Povo Brasileiro” (1984), de João Ubaldo Ribeiro, que monta um arco temporal da colonização à ditadura militar nos anos 1970.
Ainda seguindo os passos de Anderson, é possível notar a pegada negativa da melhor literatura que narra o mundo globalizado do século 21. A memória danificada das pessoas, a violência sem sentido, os pesadelos tecnológicos, o consumo desenfreado, o drama dos refugiados que chegam à Europa, a herança colonial, o rescaldo do apartheid. Nesse mapa mundi, aparecem os nomes de Roberto Bolaño, Michel Houellebecq, Don Delillo, J.M. Coetzee, Nadine Gordimer, Jenny Erpenbeck e Chimamanda Ngozi Adichie.