Em um pretérito bem próximo, um parlamentar desses movimentos que têm a liberdade como bastião propôs um projeto de lei um tanto pitoresco. O seu fito seria vedar restrições de qualquer ordem ao chamado stand-up comedy. Uma de suas disposições prevê que não poderia haver proibição de temas aos tais espetáculos, cujo propósito seria salvaguardar a livre manifestação do pensamento. Em uma tradução mais direta, a pretensão é evitar o que se poderia considerar censura aos humoristas desse viés de arte.
Uma das passagens da justificativa é deveras elucidativa. “A Constituição Federal não estabelece limites para o humor, tampouco criminaliza o exercício da atividade humorística.” Em outro trecho, o embasamento para a confecção do texto iria ao encontro de uma máxima do senso comum: não gostar de uma piada não daria a ninguém o direito de impedir a sua existência. Em entrevistas, os defensores sintetizaram que, caso alguém se sentisse desconfortável com as piadas mais pesadas, bastaria não comparecer ao teatro — uma vez que o público presente, aos milhares pelo Brasil, estaria a rir intensamente dessa vertente humorística.
Curiosamente, o próprio projeto indica que, a despeito da liberdade de se manifestar com piadas polêmicas, o humorista estaria sujeito às consequências da lei. O aparente quiproquó é fascinante: o comediante tem todo o direito de ofender, por ter público cativo, mas deve suportar, em todo caso, os desdobramentos legais. A que serve o projeto, então, haja vista que isso já ocorre?! Ora, isso é muito simples de se redarguir. Todas as vezes que os amigos da patota denigrem a ordem jurídica, a defesa tempestiva, quiçá pública e formal, surge, como imediato remédio a tentar amenizar as dores daqueles cujo afeto é efervescente. Ninguém solta a mão de ninguém. Explico, em seguida.
Zé Furdunço tem a sua casa arrombada pela força policial do Estado. Seus bens, ao chão, são destroçados; seus próximos, agredidos; e sua condução às grades que cercearão sua liberdade por tempo considerável é imediata. Em outro curso da história, um festejado influenciador digital é indiciado, com provas robustas, por crimes pesados, que o ligam, inclusive, com a permissa venia da suposição, e de alguma sorte, ao tráfico. Nenhuma ação contundente ou excessos violentos. A quem é direcionada uma comoção, com presunção quase absoluta de inocência e defesas públicas? A quem é direcionado todo tipo de maledicência, inclusive com desejos de expiração na cadeia? Não é difícil a resolução. Não é, mesmo.
Uma contextualização interessante de se pontuar: quando o atleta Vinícius Jr., do Real Madrid, foi covarde e constantemente chamado de “mono” (macaco) em jogos da “La Liga”, houve manifestação tempestiva do autor do projeto de lei. Disse ele, em suas redes, ser revoltante que, em 2023, ainda houvesse estúpidos e criminosos que se achassem superiores a outrem pela cor da pele. Falou ser absurdo; e se disse revoltado. Nesse caso, se alguém riu no estádio, a atitude racista estaria validada? Ou, por exemplo, os incomodados deveriam não ir ao estádio, haja vista ter quem goste dessas manifestações repugnantes? O palco da comédia stand-up seria uma dimensão à parte? São questionamentos pertinentes.
No caso da proteção legal ao humor ácido, a bem da verdade, o que se quer é um salvo-conduto para ações à margem da lei, desde que perpetradas pela trupe proximal. Manifestar opiniões jocosas, satíricas, disruptivas ou questionadoras é do jogo democrático, porém a conformidade se dá no limiar de não se propagar crime. É de notoriedade solar. O fino trato das exacerbadas defesas públicas é mesmo tornar o humorismo de stand-up uma profissão imaculada, imune aos deveres de atenção aos ditames do ordenamento ou à dignidade humana — outro bastião fundamental constitucional, reiteradamente preterido. É um mundo particular, em que se pode dizer, exempli gratia, que o negro reclama de emprego, todavia se insurgia na época da escravidão — quando já nascia com trabalho certo. Se alguém da plateia rir, o aval está dado.