Dia 8 de janeiro de 2023: o seu ódio não será a minha herança Foto / Casuli

Dia 8 de janeiro de 2023: o seu ódio não será a minha herança

O principal acontecimento de 2023 tinha sido a vitória da democracia brasileira. Fazia um ano desde que “patriotas” movidos por sonhos medievais invadiram, depredaram, pilharam e até defecaram nos prédios dos três poderes em Brasília. Soube-se recentemente pela imprensa que, nos meandros dos conturbados devaneios coletivos, planejava-se a tomada do poder político central à força, além da detenção e do enforcamento em praça pública dum ministro da suprema corte. Coisas de Idade Média. De doidivanas. De parvoíce. De falta de caráter.

Havia, portanto, um ótimo motivo para comemorar o fiasco da intentona dos incautos no DF: a democracia tinha sobrevivido ao levante dos sacripantas extremados. Convidei amigos para um churras lá em casa. Fruíamos de música, picanha, cerveja e dum indefectível cheiro de liberdade a fluir juntamente com a fumacinha de carvão queimado. Incomodada com os ruídos de desbragada alegria provenientes do jardim do “petralha comunista” que nunca fui, a vizinha da casa da direita tocou a campainha.

Bonita, a moça. Atraente até com seu traseiro sorridente e o narizinho novo talhado pelo esmeril do notório cirurgião plástico Eduardo Mãos de Tesoura. O broxante para mim era mesmo a camiseta coladinha no corpo com o slogan “Clube das Mulheres Atiradoras do Agro” sobre a bizarra foto de um porco-do-mato trucidado. A moçoila pediu-me para abaixar o volume do som. Quis saber se era dia do meu aniversário. Expliquei que estava recebendo amigos a fim de comemorar o aniversário de um ano do fracassado atentado do dia 8 de janeiro em Brasília. Ela corou. Disse que não tinha acontecido nada de mais, nenhuma tentativa de golpe, mas, ao contrário, uma brava, uma legítima manifestação do povo brasileiro contra os riscos que a esquerda representava ao país após a eleição de Luiz Inácio.

Claramente indignada, a exterminadora de javalis perguntou se eu, um sujeito estudado e bem esclarecido, acreditava mesmo que as eleições presidenciais não tinham sido fraudadas pelas urnas eletrônicas. Respirei fundo para não dizer alguma grosseria que magoasse o seu coraçãozinho extremista. Afirmei que eu cria piamente que as eleições tinham transcorrido de forma limpa. Tanto assim que o candidato da oposição se elegera com uma margem apertada de votos, a despeito do governo federal ter colocado em ação a pesada máquina estatal em favor próprio, ao praticar um escandaloso pacote de bondades, de isenções tributárias descabidas e de bônus financeiros pagos para determinados segmentos sociais, com a óbvia e abjeta intenção de angariar votos de última hora. A estratégia funcionou parcialmente, pois, não emplacou o presidente aloprado para o cargo máximo, mas, elegeu uma majoritária bancada de deputados e senadores da direita.

Evitei delongar o assunto. Perguntei se ela gostaria de entrar, de se juntar a nós para bebericar, ouvir música e não conversar sobre política. A mocinha disse não muito obrigado e reiterou o pedido para baixar o som. A enxaqueca a estava matando. Pensei nos javalis. Desejei melhoras. Fechei a porta. Voltei aos meus amigos. Divertiam-se na piscina. Sentei numa poltrona da varanda para apreciar o pôr-do-sol. Um bando de andorinhas praticava voos rasantes a fim de se aninhar nas sancas do teto. Sentia-me agraciado pelas avezinhas terem escolhido o meu lar como o seu lar. Nada mais propício.

Jamais bebia para me embriagar. Detestava perder o controle sobre os pensamentos. Naquele dia, estava contente demais para dar trela à misantropia. Aproveitei o contentamento para uma breve introspecção. Refleti sobre o ano que tinha encerrado. Rememorei o que de melhor tinha sucedido. Foi por pouco, mas, a despeito de tanto sofrimento, o amor vencera o ódio. Apesar de todos os senões, ainda vivíamos num país livre e democrático.

A turma me chamava. Uma amiga debochou gritando que o meu humor se encaixava no perfil “Melancólico”. Algo que ela tinha lido na internet a respeito dos temperamentos humanos. Nem melancólico, fleumático, nem colérico, nem sanguíneo. Sentia-me feliz, esperançoso e, sobretudo, convicto de que a democracia era o maior tesouro de uma nação livre. Acenei para a colérica vizinha que, apesar da enxaqueca, ainda bisbilhotava pelo vão da cortina. Deixei o copo de lado. Aumentei o volume do som. E dei um tibum na piscina com roupa e tudo. Afinal, estávamos de alma lavada.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.