Rompe o ano, e, naturalmente, tratamos logo de fazer um balanço de nossas conquistas, mas, sobretudo, de nossas perdas. Resta na alma um travo de amargor por quem não volta, uma nota de decepção pelas coisas a que se renuncia, o cansaço de saber que em breve retomaremos o fluxo do existir no inferno da rotina, que nem sempre cabe-nos escolher, até que as grandes questões sucumbem com o avançar dos anos. A irrequietude do homem frente ao passar do tempo, incansável, inclemente, cruel, e sua cornucópia de mistérios cuja solução é meramente ilusória, dá ao gênero humano das poucas certezas de que se consegue garimpar desse campo lodoso e edênico que é a vida: jamais se deve deixar passar uma boa oportunidade. Tudo quanto pode haver mais de importante troca de lugar com o fútil e o quimérico, estrangulando também os sonhos mais ingênuos.
O Brasil estreia 2024 atolado nas velhas questões de sempre — miséria galopante, políticos demagogos que se perpetuam no topo do sistema fazendo dela ótimo proveito, ignorância, má-fé —, e a literatura por seu turno encontra uma maneira de explicar seus efeitos, ou, quando menos, engendrar uma denúncia minimamente sólida. Munida de um atrevimento revolucionário, Bruna Kalil Othero diz verdades fesceninas e urgentes em “O Presidente Pornô” (Companhia das Letras), visionária a ponto do leitor confundir-se quanto ao alcance de sua prosa e não saber mais se ela fala do Brasil — ou Plazil, em referência óbvia e hilariante ao remédio usado no tratamento de distúrbios gastrointestinais —, ou se se refere a certo ex-chefe de Estado americano, enxovalhado também por pagar com dinheiro do contribuinte o silêncio de uma atriz de filmes adultos com quem partilhava os lençóis. Esse atropelo da realidade é uma das marcas mais notáveis das belas letras, das histórias que transcendem a frieza do papel e derramam-se na vida como ela é. A pena intimista de Natalia Timerman em “As Pequenas Chances” (Todavia) pouco tem em comum com a rica filosofia do escracho de Othero, e também por essa razão seu livro figura na nossa lista dos dez melhores romances brasileiros publicados em 2023, com sinopses adaptadas ou reproduzidas dos websites das editoras. Psiquiatra, Timerman divide com o leitor, num relato corajoso e tocante, a degenerescência do pai, Artur, também médico, ao cabo de um longo processo para reversão de um câncer que já o fustigara antes. “O Presidente Pornô”, “As Pequenas Chances” e as demais oito publicações dão-nos um alento mesmo que evanescente quanto a esperar um Plazil, digo, um Brasil menos nauseante, uma vez que a natureza humana não deixará de sofrer nunca.
O resultado foi obtido a partir de uma consulta aos assinantes da newsletter da Revista Bula. Dentre eles, 357 participantes compartilharam suas preferências, apontando seus romances favoritos de 2023.
Uma investigação sobre o segredo que moldou a vida de um homem, um romance especulativo, uma biografia fotográfica e, ao mesmo tempo, um relato autobiográfico que suscita, sem necessariamente responder, importantes questões: é possível conhecer alguém? É possível escrever uma vida? É possível narrar o outro sem narrar a si mesmo? “Quando eu tinha vinte anos, minha mãe avisou que meu tio-avô viria morar com a gente. Ele era, como se dizia na época, ‘esquisitão’: um tipo calado, um solteirão convicto, alguém que morou a vida inteira de favor no quartinho de fundos da irmã mais nova. Além disso, ele tinha uma paralisia nas pernas, possivelmente causada pela sífilis, e empurrava com os pés um balde de urina. Isso fazia com que ele se fechasse no seu próprio mundo”, descreve Charbel.
Como encarar as incertezas e as angústias diante do fim? Às voltas com a doença terminal da mãe e sua rotina de hospitais, exames e silêncios, ao protagonista desta narrativa só resta ser pragmático enquanto tenta encontrar alguma graça (e ironia) no cotidiano. A vivência de dores tão íntimas quanto universais, pouco a pouco, vai revelando o mais banal dos segredos: a vida sempre insiste em continuar — seja na redisposição dos móveis da casa adaptada, no flerte vacilante com a vizinha ou na insólita convivência com um sobrevivente do Holocausto obstinado em ler sempre o mesmo livro.
Um paulistano branco, de classe média e sujeito aos prazeres e pesares de sua origem torna-se um intelectual respeitado, sem grandes dramas, até que aos quarenta anos descobre ter uma doença terminal. E sua vida é uma metáfora do Brasil, que vive um regime autoritário, com banimento de livros e liberdades individuais ameaçadas, o que contribui para o acirramento das diferenças de classe. Dono de um estilo contundente, ácido, Tiago Ferro amalgama romance e o ensaio em manifestações explícitas de contestação cidadã e rebeldia artística, dando asas à passagens de memorável crônica política temperada com lembranças pessoais e escatologia.
Na literatura brasileira, são poucas as dicções tão reconhecíveis como as que neste romance-meditação se apresentam. “Nossa ontológica personagem”, protagonista, é um pretexto, uma sugestão de uma voz interior identificável, habilmente tecida pela conhecida mão dicionaresca de Evandro Affonso Ferreira. Nas elipses misteriosas de “Perdeu Vontade de Espiar Cotidianos”, a intuição sonora é fundamental: o leitor descobrirá aos poucos o texto, a clareza não será prescindível, a deriva não sobressairá neste caminho que poderia, sim, não levar a lugar algum. Mas que acaba por nos conduzir a uma espécie de graça inescapável. Neste novo romance, Evandro Affonso Ferreira recupera suas temáticas habituais: a solidão, a desesperança, o acaso, a “anatomia do inimaginável”. Mas, sobretudo, a linguagem, procurando sempre inaugurar novos nomes para as coisas, novos modos de acessar as palavras.
Enquanto aguarda um voo, Natalia encontra o médico de cuidados paliativos que atendeu seu pai Artur. A conversa desperta nela toda a experiência da perda, ainda próxima e repleta de cicatrizes. E é a memória dos meses e dias finais do pai da narradora que compõe a base deste romance de extraordinária beleza, uma indagação cortante sobre família, lembrança, judaísmo, vida e morte. Artur era médico, então a notícia de que o câncer havia retornado vem seguida da certeza da finitude — não há meias-palavras ou possibilidade de esperança. Assim, a morte vira um assunto de família, e acompanhamos não apenas o declínio físico de Artur, mas seus efeitos na vida dos filhos, da esposa e dos netos, narrados com rara delicadeza. Conforme a doença avança, cada momento ganha contornos definitivos: a última viagem, a última gargalhada, a última ida ao teatro.
Numa pátria chamada Plazil, Bráulio Garrazazuis Bestianelli elegeu-se presidente. Neste misto de ficção histórica e pornochanchada política, acompanhamos desde a infância do protagonista até a instauração de uma ditadura autoproclamada, em episódios que certamente soarão familiar ao leitor. Isso porque, para construir Bráulio, Bruna Kalil Othero mergulhou em nossa história republicana e pinçou características de todos os homens que ocuparam o mais alto cargo de poder. Já o que acontece entre quatro paredes fica por conta da autora. Com muito bom humor e inventividade, Bruna nos convida a olhar para nosso passado para ver o que constitui o Brasil, e nós mesmos. Repleto de referências que vão de Machado de Assis, Hilda Hilst e Nelson Rodrigues a memes da internet, O presidente pornô é o romance de estreia de uma das vozes mais instigantes da literatura contemporânea brasileira.
Maria Teresa vive com suas mães num casarão antigo, cheio de histórias de seus antepassados, de frente para um lajedo de pedra. Pelo peitoril, corre um roseiral, apenas com rosas brancas, e, no caminho diante da casa, passam personagens memoráveis: Mané da Gaita, músico e vendedor de doce, e sua cadela Chula; Lai, ex-prostituta e sua madrinha; os gêmeos Cícero e Antônio, filhos do dono da venda; Toni de Maximiliana, vaqueiro matador de gado, filho da sacerdotisa Mãe Maximiliana dos Santos; e Zezito, único filho homem de Luzia, e por quem Maria Teresa se apaixona e planeja se casar. No primeiro romance que assina com o próprio nome, Luciany Aparecida narra, com uma prosa lírica e de força singular, os trágicos acontecimentos que cercam um pequeno vilarejo rural no interior da Bahia. “Mata Doce” é um romance épico, delicado e poderoso, que entrelaça passado e presente em uma obra majestosa, e desde já um marco da literatura brasileira contemporânea.
Quando vê passar pela rua um colega de infância que acreditava estar morto, Danylton é levado a investigar os eventos de vinte anos antes, no Núcleo Bandeirante. À essa narrativa, soma-se a de Boamorte — miliciano cuja trajetória confunde-se com a da construção da nova capital. Na Brasília das casas geminadas, da terra vermelha e do asfalto quente, os vilões dos westerns tomam a forma de oficiais corruptos; os tiroteios aparecem primeiro nos videogames; os cavalos dão lugar ao Chevette; e o bairro vive sob o domínio silencioso do jogo do bicho. Em seu livro de estreia, Dan se apropria de elementos da cultura pop e da cultura popular para construir um romance sobre um dos pilares da identidade brasileira: a violência que rege todas as relações sociais.
Um homem deixa misteriosamente sua vida pregressa rumo a uma comunidade litorânea. Relato incisivo sobre a desagregação física, familiar e social, “A Segunda Morte” traz uma singular descrição da velhice e do encontro humano com a morte. “Ele vê a mata escura da serra acender no retrovisor, rajada pelo vermelho das luzes quando pisa no freio, e outra vez o mundo atrás de si desaparece no breu.” Assim começa este breve romance, numa descida, espécie também de fuga, com um personagem que deixa uma vida para trás. Na direção do mar, uma vila de pescadores do litoral, é para onde ruma Gustavo, um homem de quase oitenta anos, na companhia apenas do peso lento do próprio declínio. Com uma prosa direta, Roberto Taddei nos conduz ao território da finitude e do poder masculino devastado.
Essa é a história de uma trabalhadora doméstica brasileira que, vivendo na periferia, ocupa o centro da vida social graças à sua sensibilidade, simpatia e humanidade. É um romance sobre o sentido da emoção e da inteligência na realidade mais cotidiana. Num tom de crônica sobre a periferia, trazendo muito mais do que as questões graves que assolam esse espaço social, dando lugar para a delicadeza e o registro cômico, Lilia Guerra constrói aqui um riquíssimo painel da vida brasileira, muito mais difícil quando se tem na pele a cor certa, ou na certidão de nascimento o sobrenome capaz de abrir todas as portas para sempre, mereça-se ou não.