Este foi um ano de poucas leituras. O palpite mais provável, para além das desculpas já engatilhadas, “teve mudança, correria de mãe, de trabalho e a vida acontecendo a mil por hora”, é que enveredei por gêneros literários que me exigiram um ritmo mais lento: não ficção e poesia. Ambos, somam mais da metade das leituras de 2023. Mas houve de tudo. De “terras de heróis, lares de mães” a psicanálise para amadores e desemparedamento da infância. De relato de sobrevivente atacada por um urso, às cartas existencialistas de um poeta do séc. 19. De romance ganhador do Jabuti 2022 a graphic novel protagonizada por um cão. Também teve um desonroso ato falho: a meta de ler mais clássicos não chegou nem perto de ser alcançada. Ainda estou engatinhando no primeiro volume de “Os irmãos Karamázov”. Ano que vem acerto as contas com Dostoiévski. Ou não. Que ao menos as leituras sigam neste lugar de encantamento descompromissado.
Sem pestanejar, o meu troféu do ano vai para este romance dos anos 50, estruturado em forma de diário e protagonizado por Valeria Cossati. Muito bem escrito e envolvente. Mas vai além das raias da leitura prazerosa. É perturbador e te faz refletir sobre temas variados e os impactos das escolhas na vida. De Céspedes perscruta tão profundamente a alma feminina que, às vezes, é preciso tomar fôlego para continuar a leitura. A partir da intimidade de Valeria, descortina-se um panorama social da sociedade italiana do pós- Segunda Guerra e, principalmente, as dúvidas, falências, pequenas alegrias, ousadias, culpas e sentimentos contrastantes na vida de uma mulher. Ninguém sai ileso desta leitura.
As cartas que o poeta austríaco endereçou a um jovem aprendiz são pequenas preciosidades para se ler de tempos em tempos. Pílulas de sabedoria para a vida.
Para conhecer outro viés da autora do icônico romance distópico, “O Conto da Aia”. Recomendo a bela edição bilíngue (ed. Rocco). Poemas para sentir e ler no original.
O relato de sobrevivência de uma antropóloga que teve o rosto dilacerado por um urso nas montanhas siberianas. Não se engane com as poucas páginas, é denso e filosófico.
Uma seleção de doze contos da escritora contemporânea portuguesa. Sobre amores, encontros e desencontros. Destaco três: “Só sexo”, “A cabeleireira” e “A cor dos anjos
A saga verídica na Terra Ronca/GO ganha aqui contornos ficcionais com um toque de humor. Genial, tanto o enredo quanto a exuberância de linguagem.
Uma pequena incursão pelo imponderável, as desmemórias do autor. As ilustrações surrealistas de Raquel Matsushita dão uma tônica especial à leitura.
No melhor estilo deste escritor gaúcho. Divertidíssimo, despretensioso e satírico.
Uma biografia, em quadrinhos, da infausta história de Carolina Maria de Jesus, que transcendeu, pela escrita, uma realidade tão avessa à dignidade humana.
Um olhar psicanalítico e acessível (para quem não tem intimidade com Freud e Lacan) sobre o amor, a solidão, nós e os outros.
Meio livro, meio obra de arte. Traz imagens impressas em cianotipia e reconta, poeticamente, a história do marujo João Cândido, um dos líderes da Revolta da Chibata.
O verídico rapto de duas crianças indígenas por cientistas europeus, no séc. 19, traz à tona, num universo lírico, as temáticas do colonialismo, pertencimento e ancestralidade.