O ano foi daqueles. Não me deixará saudades, esse 2023 sem metafísicas, com sua cauda de pavão e seus dentes de besta do apocalipse. Vade retro, tropece na saída e caia com a bunda para cima, satanás. Ainda assim, como costuma ocorrer, as leituras foram magníficas; pois é de praxe que a literatura nos salve sempre que a vida enfeia — ou que recorramos ao mergulho no poço sem fundo de um bom livro toda vez que a realidade afina. Li umas coisas absurdamente boas nesse ano. Tive o prazer de vasculhar nossa literatura goiana contemporânea, que tem feito miséria por aí, mas também retornei a uns clássicos cabeçudos de presença praticamente litúrgica nas listas de melhores leituras. Divido com vocês um pouquinho da experiência.
De ótimas leituras em 2023, o alto do pódio acabará ficando para “O Amanuense Belmiro”, de Cyro dos Anjos. Descobri tardiamente o autor e agora não posso mais deixá-lo de fora do panteão dos nossos grandes. O livro é composto pelas notas no diário de um tal Belmiro, funcionário público, cuja vida é a sequência enfadonha de medíocres fatos. Pouco acontece, e ele se envolve em fantasias as mais esdrúxulas, que nunca dão em nada. De início, compreendi a história como uma análise do fracasso. Mas a leitura aos poucos me levou a considerá-la como, talvez, uma anatomia da mediocridade humana. No final, afeiçoado como estava à pequena vida de Belmiro (em tantas coisas semelhante à minha), mudei de ideia. A obra trata, quero crer, de uma ode à amizade. Isso porque aquilo que há de mais profundo na pequenez da vida do personagem eram exatamente as amizades que ele desesperadamente cultivava e buscava. Uma pequena obra-prima, e mais não posso dizer.
O diabo e sua trupe visitam Moscou durante o regime stalinista, na década de 1930. Algo como “Alice no País das Maravilhas” para adultos
Um romance elegante e eloquente sobre a impossibilidade do conhecimento e a perfeição do vazio. Bem antes de George Harrison deixar o cabelo crescer e aprender a tocar cítara, os bigodudos alemães dos séculos 19 e 20 já alopravam na filosofia indiana.
Um livro que persegue a história secreta de outro livro. Conta como o manuscrito de Rubayat, de Omar Khayyán, chega ao conhecimento do Ocidente. Harmoniza muito bem com uma taça de vinho de Shiraz.
Albertine revela ao marido um sonho erótico que teve com um desconhecido. Nada ocorreu de fato, mas a simples sugestão deixa o pobre enciumado. Ele sai pela noite de Viena e se perde num labirinto de eventos estranhos, personagens misteriosos e frustrações terríveis.
J.A. Leite Moraes foi um paulista designado pelo imperador para ser presidente de Goiás em 1880. Acontece que o camarada em questão não era político qualquer; era um intelectual e um escritor. Avô de Mário de Andrade. Decidiu relatar, num diário de viagem, suas aventuras por essas terras.
Não tem história, nem plot, nem clímax do herói. Não é exatamente um romance, nem um livro de contos, nem uma coletânea de histórias. Define-se às vezes como um manual, mas serve também como um conjunto de enxertos descritivos da infame confraria e seus improváveis membros.
Sempre gostei de ler autores que são idolatrados ou demonizados nos bate-bocas de internet. A escrita de Simone é eloquente e culta, e ela defende sua perspectiva com muito mais profundidade que qualquer feminista ou antifeminista de instagram.
Apesar de se pautar num evento real, ou supostamente real, não é um livro de ficção histórica, mas uma releitura poética, lírica e aberta de um dos acontecimentos mais estarrecedores da Idade Média europeia.
Um grupo de acadêmicos decide se enveredar pelas grutas da Terra Ronca para pesquisar as riquezas minerais da região. Perdem-se lá dentro. O resultado dessa presepada acadêmica é uma obra única, de linguagem riquíssima e divertida, cheia de labirintos.
Else é uma moça ingênua que vem de uma família de trambiqueiros. Seu pai deve dinheiro e agora ela precisa aceitar uma proposta indecente para salvar a família. A reflexão sobre moral se aprofunda mais do que esse resumo pressupõe.
É dessas leituras de um dia, que termina antes de percebermos. Leve, divertido, interessante, não ocupa tempo nem espaço na estante. A história nos transporta para um Portugal futurista onde a ideia de utilitarismo racionalista de mercado foi levada a seus extremos e as pessoas compram poetas como souvenires em lojas.
Neste curto ensaio, Umberto Eco rememora experiências de sua infância na Itália de Mussolini para caracterizar o que seria o Ur-Fascismo, ou seja, o fascismo original, arquetípico, a partir do qual todas as definições posteriores do termo podem ser desenvolvidas.