Desde 2004 é publicada na imprensa minha “agenda de leitura” para o ano seguinte. Raramente consigo cumprir com o planejado. Sempre surgem novas demandas ou interesses que acabam furando a fila. Durante 2023 não foi diferente e ficaram de fora dois títulos: “Samarcanda”, de Amin Maalouf, e “A Boa Terra”, de Pearl S. Buck. Lerei em algum momento de 2024. Ou não. Seja como for, 2023 foi um ano de leituras marcantes. Pelo menos uma mostrou-se determinante para transformar minha visão de mundo. Foi uma dessas raras experiências viscerais e mágicas que só a grande arte é capaz de proporcionar. A seguir, compartilho alguns desses momentos de leitura, esperando que anotem os títulos em seus cadernos… proibidos.
O genial e terrível romance “Caderno Proibido”, da italiana Alba de Céspedes, lançado em 1952, demoliu uma de minhas maiores convicções estéticas. Sua leitura foi uma experiência física, muitas vezes desagradável. Cada página é uma faca afiada. Com “Caderno Proibido” mudei de opinião sobre a polêmica acerca da “Literatura Feminina”. Se existe ou não existe? Achava que não, porque considerava machismo tosco e simplismo crítico a decantada noção de que algumas obras possuíam uma voz narrativa tão delicada e sensível que só poderiam ter sido escritas por mulheres. Para mim só existia boa ou má Literatura, independentemente de quem escreveu. Mas, sou obrigado a reconhecer, “Caderno Proibido” só poderia ser escrito por uma mulher. Não por ser “delicado” ou “sensível”, pelo contrário, por ser imensamente duro e cru em sua descrição da vivência feminina. É uma narrativa tão forte e inquietante que não pode ser fruto de uma emulação. Diferente de, digamos, Elena Ferrante. Acho possível, embora improvável, que os livros de Elena Ferrante tenham sido escritos por um ou vários homens. A obra de Alba de Céspedes não, é impossível. Por trás de sua história aparentemente banal, sobre uma mulher de 43 anos, casada, mãe de dois filhos entrando na vida adulta, que se apaixona “às vésperas de se tornar avó” e que revê sua vida após começar a escrever em um caderno comprado de modo ilícito, existe um oceano de contradições, desejos e medos. O livro, escrito na forma de diário, trata de perda de identidade, renúncias, preconceitos, imposições sociais, banalidades, amores e desamores, conflitos de geração; são tantos os temas e apresentados de formas tão profundas e complexas que impactam o leitor de forma absoluta. Ninguém sai o mesmo da leitura de “Caderno Proibido”. Algumas passagens são dilacerantes pela maneira como tornam explícitas o não dito, o dissimulado, a desesperança, as omissões. O que testemunhamos é a brutalização absoluta do “eu”. Alba de Céspedes conseguiu fazer uma obra-prima tecnicamente impecável, estilisticamente brilhante, que salta das páginas para a vida com a força dilacerante das grandes tragédias que formaram nosso imaginário, nosso mapa sentimental, nossa humanidade.
Este livro é uma reflexão sobre a condição feminina pensada a partir de uma experiência vivida pela autora em 1963: sua via crucis física e emocional para conseguir realizar um aborto em um país no qual o aborto clandestino era crime.
O romance discute a polêmica questão do plebiscito sobre o Brexit, que terminou com a saída da Inglaterra da União Europeia. O livro mostra como, tanto na vida amorosa quanto nas opiniões políticas e sociais, as pessoas apenas fingem que sabem o que estão fazendo.
Usando sua experiência pessoal em escritórios, Mariani deu forma literária para uma das figuras mais presentes da modernidade, o “homem pouco”, que pode ser definido como o indivíduo de “classe média, temeroso de perder prestígio, disposto às humilhações para conseguir uma promoção”.
O livro narra a história de um homem que se descobre sem alma. Não porque não a possui, mas porque perdeu-a. Seu desafio é recuperá-la. Não faz isso procurando, mas esperando. “A Alma Perdida” pode ser interpretada como uma parábola moral dúbia.
Essa breve novela foi uma das inspirações para Freud desenvolver sua teoria do inconsciente. Tecnicamente o livro apresenta problemas de verossimilhança e ritmo narrativo, mas sua originalidade é evidente.
Partindo da estrutura típica de um romance de formação, este livro reflete sobre paternidade, trauma, tradição e perda. A despeito de sustentar-se em uma séria inconsistência na concepção da voz narrativa, “A Mulher Ruiva” é um romance forte que merece ser lido e que gera grandes reflexões.
Seleção de narrativas curtas escritas ao longo de quase vinte anos. Trata-se de um coquetel de ironia fina, deboche sacana e muito nonsense. Literalmente, tudo pode acontecer.
Esse livro apresentou uma das melhores personagens da literatura brasileira contemporânea, a pediatra vaidosa e egocêntrica que prefere tratar seus clientes apenas profissionalmente. Narrativa irônica e tecnicamente muito bem realizada.
Um bom romance que poderia ser ótimo ou até mesmo uma obra-prima. Infelizmente, Pedro Mairal publicou o primeiro tratamento da obra. Ainda assim é um bom estudo de personagem, tomando o tema da arte como elemento central.
A autora foi vendida como uma versão feminina de Woody Allen, o que é uma simplificação. Discutindo temas tão diversos quanto artes, esportes, crianças, o planeta Marte, greve de escritores ou a tradição grega de matar portadores de más notícias, Fran mostra como é possível ser cosmopolita sem sair do lugar.
Wilde parte de reflexões sobre arte e estética para revelar a mediocridade e a hipocrisia que assombram a sociedade moderna. Publicados originalmente em 1891, seguem sendo textos muito atuais.