Gonzaguinha, talvez por transformar as dificuldades de sua vida em uma aguçada consciência política e social, fez delas o insumo principal para o desenvolvimento de sua carreira, que foi breve, mas marcante e muito importante dentro do cancioneiro popular brasileiro. E por que não dizer que, por isso, ele está inserido em nosso contexto cultural? Pode parecer brincadeira, mas é um fato que me aconteceu. Por obra do acaso, ouvi, com ouvidos de outrora, melancólicos e saudosistas, a música “A felicidade bate à sua porta” (Trem da alegria), de sua autoria, e algo me despertou para analisá-la de maneira mais atenta. Sua divulgação ocorreu em 1973 com o disco homônimo, no último ano do Governo Médici, quando todos nós vivíamos sob a sombra do “Milagre Econômico”, tendo como pano de fundo os anos de chumbo.
Um grande diferencial de Gonzaguinha é que sua ironia não se restringia às letras, mas estava inserida nele mesmo e era ainda mais apurada em suas análises políticas, muitas vezes convertidas em músicas. Mesmo assim, ele passou pela vigilância açodada das “patrulhas ideológicas”, as mesmas que levaram Wilson Simonal ao ocaso. Contudo, por ter sempre estado na luta pela democracia, tais patrulhas pouco o afetaram. É interessante ressaltar que, mesmo sendo um crítico mordaz da ditadura, ele conseguia compor com alegria, fazendo alegorias com as palavras e, com isso, embutindo-lhes conotações pouco usuais, porém verídicas. Um verdadeiro artista na burla à censura. E, dessa maneira de se expressar, ele nos faz sentir o quão importante é sua contemporaneidade, pois anos se passaram e a música em comento permanece extremamente atual.
Jamais impingiria a Gonzaguinha o rótulo de esquerdista, apenas por ter lutado contra a ditadura. Diria, sim, que ele tem o estigma de ter sido um compositor atemporal, cuja obra se adequa a qualquer momento vivido neste país. A música “Trem da alegria” é nada menos que o retrato do que estamos vivendo neste instante.
Desde o advento da República, todos esperamos que a felicidade bata à nossa porta. Entretanto, os diversos “trens da alegria” que partiram ainda não encontraram a estação principal. Em que pese boa parte da população ainda se enfeitar para participar do ópio do povo, sempre fantasiados, às vezes de maneira esdrúxula, aguardando que, após o Carnaval, o trem pare definitivamente, trazendo em seu âmago tudo o que uma população carente como a nossa precisa. Todavia, isso não é o que vivenciamos, e sequer conseguimos vislumbrar…
Salve Gonzaguinha!
A FELICIDADE BATE À SUA PORTA
Alô, alô, alô!
Diretamente da Rádio Nacional,
temos o prazer de apresentar:
A Felicidade Bate à Sua Porta!
O Trem da Alegria saiu agora.
Partiu nesse instante
da Rádio Nacional,
a gare principal da Central.
Carregado de ioiôs e colares, cocares,
miçangas e tangas
e sambas para o nosso Carnaval.
O Trem da Alegria
promete-mete-mete-mete, garante
que o riso será mais barato,
dora-dora-dora em diante
que o berço será mais confortável,
que o sonho será interminável,
que a vida será colorida etc e tal.
Que a Dona Felicidade
baterá em cada porta,
e que importa a Mula Manca
se eu quero
A Dona Felicidade
baterá em cada porta
e que importa a Mula Manca
se querem
A Dona Felicidade
baterá em cada porta,
e que importa a Mula Manca
se querem.
Pois o Trem da Alegria
promete-mete-mete-mete, garante
que o riso será mais barato,
dora-dora-dora em diante
que o berço será mais confortável,
que o sonho será interminável,
que a vida será colorida etc e tal.
Que a Dona Felicidade
baterá em cada porta,
e que importa a Mula Manca
se eu quero
A Dona Felicidade
baterá em cada porta
e que importa a Mula Manca
se querem
A Dona Felicidade
baterá em cada porta
e que importa a Mula Manca
se querem
A Dona Felicidade