A Era de Ouro da MPB remonta a quase um século, período no qual participaram grandes figuras que deixaram marcas indeléveis no nosso cancioneiro popular. Entre todos esses, destacou-se um por ser um compositor profícuo, o qual, não por acaso, criou hinos de clubes de futebol que disputavam o campeonato estadual do Rio de Janeiro, além de se tornar um dos autores mais lembrados no contexto das marchinhas de carnaval desde 1930.
Esse indivíduo, nascido em 1904 na cidade do Rio de Janeiro — então palco central da cultura brasileira, rica e hoje fonte de melancolia saudosista — compôs aos 16 anos uma opereta, “Cibele”. Sua veia satírica, habilidade em criar trocadilhos e bom humor o conduziram às marchinhas carnavalescas. Era um jovem afável que levava uma vida social intensa, frequentando rodas de samba, festas variadas e sendo habitué do carnaval carioca.
No final dos anos 20, seu sucesso em diversas áreas lhe rendeu um programa humorístico, as “Horas Lamartinescas”. Isso foi um feito notável, pois as rádios, principais veículos de comunicação da época, selecionavam rigorosamente seus apresentadores. Naquele tempo, era imprescindível o domínio da língua pátria e seus galicismos, ao contrário de hoje, quando qualquer um pode alcançar a fama com o apoio de um patrocinador.
Lamartine Babo destacou-se nas marchinhas carnavalescas sem nunca ter estudado música formalmente. Suas composições, atuais até hoje, diferem das pueris que dominam o cenário atual. As marchinhas derivam das fanfarras militares em termos de harmonia.
“O teu cabelo não nega” e “Linda morena” são duas marchinhas que, ao longo de um século, marcaram todos os carnavais dignos desse nome, apesar da proliferação de obras de menor qualidade na festa atual. Vale ponderar sobre as letras dessas músicas, que hoje enfrentariam o escrutínio de censores politicamente corretos. Não se deve apagar a história para redimi-la.
Lamartine não tinha formação musical, assim como a maioria dos compositores da época. Sua incursão na música foi influenciada por seus pais, que, embora não fossem músicos, promoviam saraus com a participação de Ernesto Nazareth e Catulo da Paixão Cearense. Segundo Nazareth, Lamartine descrevia arranjos inteiros ao compor, cantando introduções, meios e fins, solfejando acordes e sugerindo partes instrumentais.
Sua sólida formação cultural deve-se em parte ao fato de ter estudado em bons colégios, como o Colégio São Bento no Rio de Janeiro, e se graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade do Rio de Janeiro. Sua carreira artística durou 33 anos, com breves incursões na televisão. Foi radialista, produtor musical, humorista e compositor.
Um exemplo da criatividade, sagacidade e humor satírico de Lamartine Babo está arquivado no museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. Sua primeira profissão foi telegrafista. Certa vez, ao enviar um telegrama, um colega telegrafista descreveu-o em Código Morse como “magro, feio e de voz fina”, ao que Lamartine respondeu prontamente com a mesma descrição, adicionando “e ex-telegrafista”. Ele também dizia: “Sempre me achei um colosso, mas um dia, me olhando no espelho, percebi que não tenho colo, somente osso”.
As marchinhas de carnaval, originárias de Portugal, atingiram seu auge em 1920. Embora as portuguesas tivessem um ritmo mais lento, a influência do jazz estadunidense trouxe um novo ânimo harmônico ao carnaval brasileiro. Apesar da queda de popularidade das marchinhas na década de 60, elas nunca foram esquecidas, graças ao seu ritmo dançante, letras fáceis e melodias inteligentes.
“O teu cabelo não nega”, composta pelos Irmãos Valença e Lamartine Babo, foi gradualmente excluída dos salões de carnaval devido a seu conteúdo considerado racista. Lançada na década de 30, a música originalmente se chamava “Mulata” e fez sucesso em Recife. Os irmãos Valença, buscando maior divulgação, levaram a música à gravadora Victor no Rio de Janeiro. Lamartine foi consultado para adaptar a música, retirando gírias pernambucanas e acrescentando elementos populares no Sul e Sudeste, tornando-a comercialmente viável. Ele renomeou a marchinha para “O teu cabelo não nega”, que era o primeiro verso. As mudanças foram feitas sem consultar os irmãos Valença, e a música foi lançada como de autoria de Lamartine Babo. Isso gerou um processo judicial, vencido pelos irmãos Valença, mas ainda hoje a autoria é frequentemente atribuída a Lamartine.
Quando, atualmente, se ouve essa música, já no primeiro verso, sente-se um tom racista impregnado, o que para a época era plenamente aceito pela sociedade, mesmo porque havia 40 anos desde a libertação dos escravos e o racismo estava ainda arraigado. O verso “Mas como a cor não pega, mulata” tornou-se o calcanhar de Aquiles da composição, pois, na visão do eu lírico, traz a sensação de receio de se contaminar com a cor. No entanto, logo em seguida, ele se redime, ao perceber que, sendo assim, ele pode desejar o amor da mulata. Infelizmente, tais versos hoje são inoportunos, embora ninguém se atenha a esse tipo de análise enquanto pula carnaval. Absterei-me de comentar o que alguns filólogos fizeram com a palavra mulata, pois este escriba não concorda com a atual versão dada a esse vernáculo.
Interessantemente, há um contraditório fomentado no final dos versos, quando então se faz uma glorificação à morenice e à mestiçagem, características inatas da população brasileira: “Quem te inventou meu pancadão/Teve uma consagração/A lua, te invejando, fez careta/Porque, mulata, tu não és desse planeta”. “Tens a alma cor de anil”, e segue-se a paixão do poeta. Encerrando essa análise, recorro a Nelson Rodrigues, que dizia que o domínio do futebol brasileiro sobre os demais se deve à “união bem-azeitada de brancos, negros, índios e asiáticos” na composição de nossa sociedade.
E, por falar em mulata, Oswaldo Sargentelli, sobrinho de Lalá, divulgou mundialmente a beleza das mulatas brasileiras com o seu show das Mulatas do Sargentelli, “As mulatas que não estão no mapa”. Hoje, ele seria perseguido pelo desprezível movimento do “politicamente correto” por usar o termo mulata.
Lamartine era um compositor plural, de capacidade ímpar, produzindo três operetas (“Cibele”, “Lola” e “Viva o amor”), valsas, como “Eu sonhei que tu estavas tão linda”, “Mais uma valsa, mais uma saudade”, e canções populares, como “Serra da boa esperança” e “No rancho fundo” (com Ary Barroso).
Ao compor “Linda morena”, Lalá provou a todos que jamais foi racista. Pelo contrário, era um ardoroso fã de nossa miscigenação: “Linda morena, morena/Morena que me faz penar/A lua cheia que tanto brilha/Não brilha tanto quanto o teu olhar”.
Quanto aos hinos dos clubes de Futebol do Rio de Janeiro, Lamartine os compôs bem antes da Copa de 1950, embora estivesse protelando a entrega das letras à gravadora há muito tempo. Duas histórias permeiam a composição desses hinos, e a primeira versão relato agora.
Certo dia, Lalá foi convidado pela diretoria da gravadora para participar de um baile, convite que jamais recusava. Percebeu a cilada em que caíra quando sentiu que havia sido sequestrado para finalizar os tais hinos, que, não por acaso, ficaram sensacionais, com todos os clubes os incorporando à sua história. De todos eles, o único feito em parceria foi o do Fluminense, time da elite carioca, que contou com o maestro, pianista e arranjador Lyrio Panicali, um tricolor histórico. Conta-se que o último dos hinos a ser composto foi o do seu time do coração, o América Futebol Clube, por sinal classificado como o hino mais bonito de todos.
A outra versão, mais plausível e menos folclórica, remonta ao programa de rádio “Trem da Alegria”, de Heber de Boscoli, que o desafiou a escrever os hinos dos onze clubes de futebol que disputavam o campeonato carioca, apresentando um por semana em seu programa de rádio. Lalá assim o fez, inserindo-os definitivamente na história do futebol brasileiro.
Em 1981, a Escola de Samba carioca Imperatriz Leopoldinense ganhou o carnaval com o enredo “O teu cabelo não nega (Só dá Lalá)”, com isso houve não só um resgate de sua memória como também lhe foi impingida a absolvição de um possível racismo.
Terminar esse ensaio sem comentar a música “No rancho fundo” seria um desplante, pois trata-se de uma referência em MPB. Foi composta por Ary Barroso, reconhecidamente um dos dez maiores compositores do Brasil, em 1930, e recebeu uma letra de J. Carlos intitulada “Esse mulato ainda vai ser seu — Na grota funda”. Ary, recém-chegado ao Rio de Janeiro vindo de Ubá-Minas Gerais, para se manter, compunha melodias para peças teatrais. Numa dessas peças, “É do balacobaco”, surgiu a primeira versão dessa música. Lamartine Babo assistiu uma das apresentações dessa peça e, ao ouvir a música, resolveu escrever uma nova letra que harmonizasse com aquela beleza melódica. Desde então, surgiu esse poema que nos arrebatou. Mas, para não fugir à regra, Lalá escreveu os novos versos e não os comunicou aos proprietários originais, apresentando sua nova versão acompanhado de Braguinha e Noel Rosa em um programa da rádio Educadora. A parceria com J. Carlos foi desfeita, surgindo uma nova dupla de compositores que proporcionou vários outros sucessos pelo Brasil afora.
Sem dúvidas, Lalá protagonizou controvérsias em todas as esferas pelas quais passou, jamais se pautando pelas regras de seu título universitário. Lalá fez da vida tudo o que fez trabalhando sem, contudo, deixar uma mancha que maculasse seus feitos.