Filme com Ricardo Darín, que foi aplaudido de pé no Festival de Cannes, está na Netflix Divulgação / Patagonik Film Group

Filme com Ricardo Darín, que foi aplaudido de pé no Festival de Cannes, está na Netflix

O cinema da Argentina vem mantendo com galhardia a tradição de apresentar filmes muito bem-produzidos, com histórias plurais e, sobretudo, um elenco primoroso, com destaque para Ricardo Darín, certamente o ator mais reconhecido do país e celebrado mesmo entre os brasileiros. “Abutres” encaixa-se tanto numa faixa como na outra, com Darín incorporando, como sói acontecer, um papel acentuadamente dramático, profundamente melancólico, sem nunca esticar a corda mais do que o enredo pede.

Dando início à parceria que o iria consagrar, Pablo Trapero extrai de seu protagonista instantes de diabólico lirismo — façanha que replica com menos êxito, mas ainda assim com grandeza em “Elefante Branco” (2012) —, chegando ao extremo do romance impetuoso destacado em seu roteiro, escrito com Alejandro Fadel, Martín Máuregui e Santiago Mitre. Nesse ponto, entra uma outra variável fundamental na equação, permeando todo o filme e servindo de bússola ao espectador: quando ela aparece, a tensão é certa.

As cenas em preto e branco de um acidente de carro tratam de desfazer qualquer dúvida: a barbárie, o lado mais torpe do homem, vem em ondas de imagens assumidamente perturbadoras, em que as aves de rapina de uma Buenos Aires nada glamorosa assenhoram-se da noite e buscam seu repasto, argumento de que Dan Gilroy também se vale no quase homônimo “O Abutre” (2014). Na pele de Sosa, um ex-advogado banido das organizações de classe, Darín, personifica essa ideia, sobrevivendo de seus périplos pela madrugada atrás de vítimas de colisões e toda sorte de tragédias na intenção de oferecer às vítimas ou a seus parentes serviços funerários e apólices de seguro de vida que nem sempre honram o que ali vai escrito.

Pouco depois, Sosa aparece levando uma sova de tipos suspeitos que enterravam um conhecido. Esses recortes do submundo portenho ficam bem no homem bonito, porém vários tons abaixo do vulgar, que encontra a alma gêmea que o completa. Luján Olivera, médica especialista em primeiros socorros a feridos graves numa megalópole com larguíssima demanda para tal ocupação, atravessa o caminho de Sosa e nessa hora, Martina Gusmán alia-se a Darín no firme propósito de, a um só tempo, confundir o juízo de quem assiste com uma interpretação que pende ora para a suavidade, ora para a neurastenia, a versão feminina do anti-herói.

No princípio do terceiro ato, Trapero se imbui de vez da potente essência noir de seu longa e arrisca-se a denunciar o modus operandi dos negócios com que Sosa ganha a vida. Um golpe de Casal, o dissimulado mafioso interpretado por José Luis Arias, dá azo a uma tentativa de extorsão do abutre, que se traduz em mais sangue, em sua vida e na de Luján. Sem condescendências de nenhuma espécie, este trabalho do diretor é outro dos filmes realizados para além do rio da Prata merecidamente famosos por suas tramas originais, cheias de guinadas narrativas, e, sobretudo, indiferentes a patrulhas ideológicas. Nesse particular, a diferença entre seus pares do Brasil chega a ser um escândalo.


Filme: Abutres
Direção: Pablo Trapero
Ano: 2010
Gêneros: Crime/Thriller
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.