Somos as palavras que trocamos, os erros que cometemos e os impulsos que cedemos

Somos as palavras que trocamos, os erros que cometemos e os impulsos que cedemos

Somos o que restou do que um dia fomos. Somos o pó de uma infância feliz e a nuvem fazendo pairar incertezas sobre uma velhice digna. Somos o mundo de alguém e o nada para o mundo inteiro. Somos a promessa de evolução, assim, sem pressa, caminhando numa procissão sem rumo, com a fé de que lá na frente seremos um tantinho melhores. Nunca estivemos tão perdidos nessa romaria chamada Vida. Procuramos caminhos e saídas através dos pés dos outros, escutando vozes paralelas à nossa, seguindo andarilhos igualmente perdidos. Nos preocupamos em saber para onde ir, quando nem sabemos quem realmente somos.

Somos muito mais do que a herança deixada por nossos pais na cor dos olhos, na mesma mania de dormir de braços cruzados, no sinal de nascença no pé esquerdo. É preciso crescer de fora para dentro e, sobretudo, de dentro para fora, para perceber que não somos apenas uma extensão genética e uma ordem cronológica. É necessário arriscar os passos longe de casa, para que eles nos tragam mais perto de nós mesmos. Foi assim que eu pude perceber que existo, penso, sinto e ajo de acordo com as experiências por mim vividas. As minhas verdades são só minhas, assim como os meus sonhos, medos e promessas. Na mesma bagagem que carrego as minhas vitórias, também levo o peso das minhas derrotas.

O tempo me ensinou que somos e estamos em uma constante transformação. Por isso, preste bastante atenção. Porque amanhã, nem eu e nem você seremos iguais. Nós só seremos iguais se nada aprendermos com a vida, se a gente não assimilar o problema e não revidar com a solução. Como a pessoa que sempre fura o dedo manuseando uma agulha, como aquele que tropeça todos os dias na mesma pedra. Se não houver uma mudança de comportamento, uma prevenção, cairemos sempre nos mesmos erros e sentiremos as mesmas dores. Transformar-se, antes de tudo, é um processo de reforma interior.

Dizem que nós somos o que pensamos, o que sentimos, o que dizemos e, principalmente, o que calamos. É possível que sim. Mas é provável também que os nossos sentidos sejam influenciáveis, e tendam a distorcer e confundir o nosso verdadeiro eu. Uma sensação de fora pode provocar uma emoção por dentro, o olhar do outro pode nos fazer enxergar com os olhos dele. Na verdade, não somos o que percebemos, até porque a nossa percepção está suscetível a muitas coisas, principalmente à interferência de quem nos cerca. Mas, afinal, quem somos nós? Por que é tão difícil encontrar essa resposta?

Atribui-se à Freud, ainda que sem confirmação sobre a autoria, que “não somos apenas o que pensamos ser. Somos mais: somos também o que lembramos e aquilo de que nos esquecemos; somos as palavras que trocamos, os enganos que cometemos, os impulsos a que cedemos”.

Só o autoconhecimento nos defenderá de nossas próprias ilusões e das intervenções dos outros. Mas, enquanto houver pressa em encontrar um rumo, seguiremos desnorteados e desprotegidos diante das ciladas da vida. Antes de saber para onde ir, precisamos caminhar para dentro de nós. Não é fácil. Não é rápido. Urgente é desarmar o coração e abrir as portas de casa para que possamos entrar. E permanecer dentro de nós. Quando a gente se reconhecer, aí sim, saberemos exatamente para onde ir.

Karen Curi

é jornalista.