Filmes sobre a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) não são exatamente raros. O palpite, errôneo, deve-se à evidência de muitas dessas produções remontarem a tempos quase esquecidos, dados por mortos, mas que, em razão da insensatez humana, voltam à baila de quando em quando, trazendo junto a urgência de se pensar sobre os rumos que devem tomar pelas nações neste alucinado e alucinante século 21, estigmatizado já na primeira hora como uma era de extremos, violência e medo.
A Grande Guerra fora a grande responsável por corroborar e dar fôlego estendido à hegemonia americana, e, assim, os Estados Unidos firmaram-se como a maior potência bélico-econômica do mundo desde então. Apesar do título, “Amsterdam” é, no fundo, uma ode que realça o encantamento do nova-iorquino David O. Russell por sua cidade, e claro, por seu país, em que a menção à capital dos Holanda surge como a palavra mágica que libera homens torturados por lembranças funestas e os transporta para dias de puro sonho.
Russell despeja sobre o vasto elenco ilusões de um tempo que não viveu, carregando nas tintas do sentimentalismo aqui e ali, porém se há uma coisa de que seu filme está cheio é de personalidade. Seu texto, caudaloso, potente, detalhado e cínico, com muito, mas muito espaço para o delírio, o que decerto confunde alguns. Vencido o estranhamento incipiente, torna-se impossível não embarcar na loucura maravilhosa que o diretor-roteirista proporciona.
Em “Amsterdam”, Russell continua operando com destreza a metralhadora giratória que tão bem caracteriza seus trabalhos, ao ponto de muitas vezes não se ter certeza quanto ao assunto de que está realmente tratando. Meio por acaso, um círculo de amigos toma parte num assassinato que apenas os espectadores sabem que eles não poderiam ter cometido.
A história rompe em Nova York, em 1933, mas vem e volta no tempo, até 1918, o último ano da guerra, em Amsterdam, onde o movimento fascista ganhava força, a exemplo do que acontecia em toda a Europa, aliás. O Movimento Nacional Socialista nos Países Baixos só ganha musculatura nos anos 1930, chegando a ser a única agremiação política na legalidade no país quando da ocupação alemã durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), mas, duas décadas antes, a infiltração das ideias de Benito Mussolini (1883-1945) junto ao proletariado é um flagelo vigoroso o bastante para alcançar a América de Frank Delano Roosevelt (1882-1945), no primeiro de seus doze anos na Presidência.
A longa abertura serve para apresentar o cirurgião Burt Berendsen, cujo consultório, na rua 138, vive cheio de veteranos da Primeira Guerra, como ele. Berendsenperdera o olho direito na Batalha do Marne, em setembro de 1914, logo no principio dos enfrentamentos, e Christian Bale, como sempre, usa todos os recursos que pode a fim de tornar este mais um tipo memorável de sua galeria de personagens.
O médico trabalha num elixir analgésico capaz de sufocar qualquer dor, mas muito antes disso, termina viciado num opioide que integra a fórmula de sua poção mágica. Aos poucos, Russell dá as condições para que Harold Woodman e Valerie Voze, os coprotagonistas vividos por John David Washington e Margot Robbie, apareçam, guardando para os últimos lances a solução do tal homicídio, estreitamente vinculado a um episódio vexatório das coxias daquele teatro sinistro.
Filme: Amsterdam
Direção: David O. Russell
Ano: 2022
Gêneros: Drama/Comédia/Mistério
Nota: 9/10