Caetano Veloso se encontrou com Paulo Vanzolini na esquina das Avenidas Ipiranga e São João. São Paulo é uma cidade que provoca os mais diversos sentimentos nas pessoas: amor, ódio, medo, estranhamento, ansiedade etc. O paulistano Paulo Vanzolini, doutor em zoologia e compositor ocasional, era um saudosista e lembrava-se da cidade antes de ela se tornar o gigante atual: “A lembrança que eu tenho de São Paulo é de uma paz completa. Era uma cidade meio caipira, mas uma cidade muito mansa, muito pacífica, muito cordial”. Essa São Paulo, que não existe mais, foi tema de algumas canções do dr. Vanzolini, um cientista chegado à boemia e apaixonado por música.
O samba-canção “Ronda”, sua composição mais conhecida, é datada de 1945. Inezita Barroso a gravou, por falta de opção, no lado B do compacto “Marvada Pinga” em 1953. A princípio, a música ficou restrita ao universo boêmio de São Paulo frequentado por Vanzolini. Só passou a ser, gradativamente, conhecida do grande público no final dos anos 60, quando foi regravada por vários artistas da MPB. A consagração definitiva veio em 1977, com o registro da cantora paulistana, Márcia.
A canção narra a busca de uma mulher ciumenta por seu homem em uma jornada noturna diária pelos bares do centro de São Paulo. O que parece ser apenas uma busca do amor perdido passa por uma reviravolta ao final da música, quando descobrimos que ela procurava seu amante para matá-lo:
E nesse dia então
Vai dar na primeira edição
Cena de sangue num bar da
Avenida São João.
Para o baiano Caetano Veloso, a cidade de São Paulo é um misto de encantamento e estranhamento, e ele relata esse seu sentimento dúbio em seu samba-canção “Sampa”, gravado em 1978. O intuito de Caetano era fazer uma homenagem à cidade onde ele morou — junto a outros tropicalistas, até dezembro de 1968, quando foi preso pela ditadura e obrigado a se exilar em Londres — e homenagear a música “Ronda” de Paulo Vanzolini. É possível ver a semelhança melódica entre as duas canções. E isso fica claro logo no início da música de Caetano:
Alguma coisa acontece
no meu coração
Que só cruza a Ipiranga
e a Avenida São João.
A partir desses versos iniciais, Caetano desenvolve uma lista que poderia ser “o melhor e o pior de São Paulo” na sua visão. Nesse processo, ele cita outros artistas ligados à cidade: Rita Lee, os Mutantes, Haroldo e Augusto de Campos, José Celso Martinez e os Novos Baianos.
Apesar da homenagem declarada por Caetano, Paulo Vanzolini não ficou muito satisfeito com “Sampa” e chegou a afirmar que a quantidade de compassos que o baiano “copiou” já configurava plágio. A bronca de Vanzolini se estendeu à irmã de Caetano, Maria Bethânia, que também havia gravado uma versão de sua “Ronda” em 1978. Versão esta que o paulistano disse ter detestado. Apesar das ameaças, talvez fosse só pilhéria, Paulo Vanzolini nunca chegou a processar Caetano Veloso pelo suposto plágio, porque considerava sua composição, “Ronda”, uma obra “menor”. Sorte nossa, pois assim temos duas obras-primas do cancioneiro nacional com a cidade de São Paulo como tema.
Não há registro de que Paulo Vanzolini, falecido em 2013, e Caetano Veloso tenham chegado a se encontrar na esquina das Avenidas Ipiranga e São João. Seria bom pensar que os dois se abraçaram e se sentaram para papear em algum bar da região.