Filme dirigido por Ben Affleck, na Netflix, é um dos mais angustiantes e perturbadores da história do cinema Divulgação / Miramax

Filme dirigido por Ben Affleck, na Netflix, é um dos mais angustiantes e perturbadores da história do cinema

Boa parte das misérias humanas vêm à superfície num só golpe em “Medo da Verdade”, a adaptação de Ben Affleck para o quatro livro da compilação de seis romances do americano Dennis Lehane. “Gone, Baby, Gone” (1998), de onde sai o filme de Affleck, é o ponto de virada de Patrick Kenzie e Angie Gennaro, dois detetives pés de chinelo especializados em rastrear suspeitos de dívidas de jogo e outras atividades tão ou mais nebulosas, que também partilham a cama quando ninguém vê.

Eles deslizam por Boston como aves de rapina à cata das minúsculas evidências que os possam ajudar a botar a mão em suas presas, até que um crime verdadeiramente repulsivo acende-lhes a curiosidade, num lugar sem a sofisticação de Nova York, o calor lúbrico de Los Angeles ou os encantos furtivos de Chicago. Patrick e Angie enfronham-se em comunidades paupérrimas da capital de Massachusetts, ruas de casas deterioradas que conhecem bem, devotados a solucionar o crime que escandaliza a cidade, tendo de admitir logo em seguida que, antes de mais nada, não são qualificados o bastante para fazer o que se propõem, e, a partir dessa primeira frustrante descoberta, encarar revelações de impacto muito mais arrasador. No roteiro, escrito com Lehane e Aaron Stockard, o diretor volta a exercer o talento que o consagrou ao lado do amigo Matt Damon em “Gênio Indomável” (1997), de Gus Van Sant, e mostra um texto engenhoso, penetrante, que não deixa escapar nada, escolhendo a hora adequada para desvendar o mistério que segura todo o filme.

As coisas que não escolhemos é que fazem-nos ser quem somos, diz Patrick, o carismático anti-herói de Casey Affleck, na introdução, enquanto caminha por uma vizinhança perigosa de Boston. Desde já, paira um suspense opressivo na tela, justamente pelo tom lhano do monólogo do protagonista, acentuado pela trilha de Harry Gregson-Williams, não ser compatível ao que se espera do enredo, e não demora para que o Affleck mais velho conduza a história para o que esperamos dela. Amanda McCready, uma garota de quatro anos, some sem deixar vestígio, despertando a indignação dos vizinhos, tanto mais porque (a) esta não foi a primeira vez e (b) as autoridades parecem estar sempre muitos passos atrás dos sequestradores, quando prontificam-se a fazer alguma coisa.

Nesse intervalo, Bea McCready, uma meia-irmã de Helene, mãe da criança, e o marido, Lionel, acham por bem se garantir também por meios extralegais, e é aí que Patrick entra no caso, a contragosto de Angie, que, claro, vai a reboque. Amy Madigan, Titus Welliver e Amy Ryan, uma das melhores atrizes de sua geração, distraem o público em pesarosas acusações mútuas, plenas de verborragia e rancor, ao passo que na outra ponta, o antimocinho do Affleck caçula vai persuadindo Angie a aceitar a encomenda. De pouco em pouco, Michelle Monaghan mostra a que veio, e a dobradinha dos investigadores rende ótimas paisagens, com a medida exata de noir e romance. Todo o segundo ato corre assim, até que entram os componentes típicos dos contos policiais em que Lehane é mestre, e “Medo da Verdade”, curiosamente, começa a ficar semelhante a “Garota Exemplar” (2014), um dos novos clássicos do gênero, dirigido por David Fincher e protagonizado por Ben Affleck.

À corrupção sistêmica das forças de segurança, personificada pelo Remy Bressant de Ed Harris e Nick Poole, de John Ashton, junta-se uma carga relevante de psicopatia, trazida à tona no desfecho, por Jack Doyle, o policial aposentado vivido por Morgan Freeman. Aqui, Ben Affleck tira Dennis Lehane de cena e reforça suas impressões pessoais a respeito da tal falência do sistema (nos Estados Unidos!), guardando a reviravolta que desmascara Doyle e eleva Patrick à condição de salvador branco — dos brancos. E nem é preciso dizer que Casey Affleck recebera o papel graças ao supino talento, não ao parentesco com o diretor.


Filme: Medo da Verdade
Direção: Ben Affleck
Ano: 2007
Gêneros: Suspense/Noir/Thriller 
Nota: 9/10