A obra-prima que ressuscitou a carreira de John Travolta está Netflix Divulgação / Miramax Films

A obra-prima que ressuscitou a carreira de John Travolta está Netflix

Na década de 1920, revistas feitas com a polpa da celulose, ganharam o mundo com histórias que misturam o noir, o fantástico e a ficção científica a cenas de ímpeto furioso, tão explícita quanto a imobilidade daquele papel barato permitia. As pulp fiction se constituíram o catecismo às avessas de Quentin Tarantino, que guardou a referência para usá-la no título de seu primeiro grande filme, um arrazoado de tipos os mais diabólicos em que refinou a estranheza que já mostrara em “My Best Friend’s Birthday” (1987), o curta que roteirizou, dirigiu e estrelou, o trabalho inaugural de um acervo que se destaca pela excelência, pela riqueza de detalhes e por um prazer incontrolável de causar pruridos morais genuínos — ao menos até que a pipoca acabe e as luzes do cinema voltem.

“Pulp Fiction”, a que Tarantino acrescenta o aposto “tempo de violência” (como se precisasse), é, com a licença do trocadilho, uma pancada. Poucas vezes na história do progresso das manifestações artísticas, se conseguiu, de uma só vez, balançar um tanto o paradigma do que se estava fazendo nos estúdios, e se o recorte é limitado ao século 20, aí não tem para ninguém mais: “Pulp Fiction”, ainda hoje, está cheia de lições a dar à moçada hype que quer reinventar tudo, sem dar conta sequer do próprio quarto. 

A estrutura cíclica, ora centrípeta, ora centrífuga, do texto de Tarantino e Roger Avary poderia revelar-se uma tragédia em mãos pouco diligentes, mas o diretor sabe muito bem como apontar em cada sequência um elemento qualquer que capta na hora a atenção do público. Pumpkin e Honey Bunny, os dois pobres-diabos que levam minutos intermináveis confabulando um assalto ao diner em que tomam um café, tecendo considerações quase shakespeareanas (e hilárias) sobre ser ou não oportuno dar azo à empreitada, prepara o espectador para tudo quanto virá ao longo de mais de duas horas e meia, e Tarantino já começa a botar as mangas aqui, inovando também na disposição narrativa do que é contado.

De uma forma ou de outra, os outros cinco personagens nascem desse tíbio embate moral dos vilões de Tim Roth e Amanda Plummer, e o enredo começa a enfronhar-se onde de fato interessa. Nada do que é dito é gratuito, e esta talvez seja a ocasião em que Tarantino mais se valeu da boca das figuras que cria para dizer o que ele mesmo pensa. Muito mais que irrepreensivelmente estético em sua plasticidade kitsch na qual tudo cabe, “Pulp Fiction” é uma ode ao diálogo, o verdadeiro fio condutor da história, como se verifica logo depois, no momento em que Jules Winnfield e Vincent Vega, os “pintores de parede” da máfia incorporados por Samuel L. Jackson e John Travolta, ótimos, procuram a tal maleta ainda alvo de teorias, conspiratórias ou nem tanto, trinta anos depois. O que se passa na cabeça de porco onde está o trio de marginais xexelentos, adequadamente devassada por Jules e Vincent, é inominável e um lembrete a quem está do outro lado de que este é um filme que não poupa ninguém; contudo, antes de entrarem, os dois capangas, vestidos com garbo, tal como Pumpkin e Honey Bunny, levam um bom tempo a especular sobre se uma tal Mia Wallace teria sido infiel ou apenas leviana ao permitir que um homem que não seu marido, lhe massageasse os pés. O gancho para outra virada.

Uma Thurman domina o segundo e o terceiro atos, sendo exageradamente lembrada pela cena em que Mia, sofrendo de uma overdose acidental, despista a morte com a dose de adrenalina no peito, aplicada por Lance, o seu traficante de estimação, de Eric Stoltz. A amizade mais e mais estreita do anticasal encarnado por Thurman e Travolta é a bomba debaixo da mesa em “Pulp Fiction”, com o lamentável desperdício de Ving Rhames, que surge aqui e ali, em manobras deus ex machina, para tapar uma eventual lacuna entre um e outro segmento. Mas a forma como Tarantino encontra para colocar os dois matadores meio ridículos do prólogo no desfecho, realçando o caráter de farsa da trama, é pouco menos que genial. “Pulp Fiction” é o exemplo cabal do filme que dispõe de tantas conclusões quantas se deseje, entendido sempre de um jeito absolutamente inédito a cada nova apreciação. Como todo clássico que se preze.


Filme: Pulp Fiction — Tempo de Violência 
Direção: Quentin Tarantino
Ano: 1994
Gêneros: Drama/Thriller/Noir
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.