“Nem tudo é o que parece. Paul McCartney não existe. Todo mundo sabe que ela morreu num acidente automobilístico em meados dos anos 1960. Para evitar escândalo, comoção e altos prejuízos financeiros no auge da beatlemania, a sua morte trágica, precoce, foi completamente abafada. Mais ou menos. A mim, não enganaram. Por exemplo, na capa do disco ‘Abbey Road’, ele é o único dos Beatles que atravessa descalço sobre a faixa de pedestres, segurando um cigarro com a mão direita. Que gafe. Que patacoada. Todo mundo sabia que Paul era canhoto. Havia sinais inequívocos de que ele tinha mesmo batido as botas. Só não via quem não queria. Fato é que colocaram um sósia no seu lugar — um bom sósia, convenhamos — provavelmente, um ciborgue. Quem colocou? Sei lá. O serviço secreto britânico. A Apple Records. A NASA. George Martin. Os comunistas. Os detalhes pouco importam. Só sei que o substituíram por um sujeito fisicamente parecido, que não pertencia a esse mundo. Acho que teve a mão dos marcianos nessa fraude, a maior tramoia do show business desde que descobriram que Elvis estava vivo e residia na Argentina…”
Multidões tinham dessas coisas. Sempre aparecia um doidivanas pedindo trocado, falando lorota, arrastando a gente para fora do limite das loucuras reais. Não tinham aberto os portões e a fila já estava um escândalo. Fazia tempo que Paul McCartney não dava as caras no Brasil. Desde 2019, para ser exato, antes de pipocar a pandemia pelo Covid-19. Paul era um homem velho. Aposto que tinha tomado todas as vacinas disponíveis contra o coronavírus. Veganismo tinha limite, ora, bolas.
Paul tinha começado por Brasília a turnê brasileira de “Got Back”. Toquei de carro até a capital federal, juntamente com minha gata e uma turma de amigos. Poder eu não podia, mas, decidi torrar uma grana e dar vazão ao amor que sentia pelo Beatles, desde a adolescência. Aquela história das arenas não possuírem assentos numerados aborrecia a gente. Não tinha outro remédio. Encarei a fila de entrada com quatro horas de antecedência. Trombei com doidinhos que atiravam pedras na lua. Eu já sabia que naquela época do ano chovia horrores no DF. Então, levei uma capa de chuva amarela, estilo capa de pedreiro, espalhafatosa, contudo, impermeável de verdade. Havia ambulantes vendendo capas plásticas por cinco reais. Quando começou a pingar, o valor subiu para vinte. Coisas do capitalismo. Fãs de verdade não arregravam, encaravam chuvas, raios, granizo, vendaval e as teorias de conspiração.
Sentei com os amigos num local estratégico que ficava o mais perto possível do palco. E dos banheiros também. Chega uma certa idade em que as questões urológicas contam muito. Evitei ingresso na pista. Não suportava mais assistir aos shows musicais em pé. Questões de varizes, de claustrofobia e de nervo ciático, se é que me entendem. Ainda faltavam três horas para o início do espetáculo. Começamos a consumir alimentos e bebidas. Tudo custava vinte reais. A água mineral. A cerveja em lata. O pastel frito. O churro de doce de leite. A pipoca. O picolé. O hot-dog. Quer dizer, o hot-dog custava ainda mais: vinte e oito reais, só para variar. Sabia que Paul não comia carne, ovos e afins. Era um ativista das causas ecológicas também. Então, eu podia muito bem me virar só com uma garrafinha d’água. Não ia ficar reclamando dos altos preços praticados, provavelmente, calculados em libras. Era pegar ou largar. Larguei.
Um DJ entrou em cena para fazer um esquenta com o mar de gente. A primeira canção que tocou foi a versão de Rita Lee para “In my life”, de Lennon & McCartney. Nem bem soaram os primeiros acordes, um dos companheiros da caravana chorou: “Isso é Rita Lee, não é?!”. Sim. Era Rita Lee. Afaguei a sua cabeça branca que mais parecia a extremidade de um cotonete. Éramos uma trupe de veteranos apaixonados pela vida e pelos Beatles, os velhos Beatles. Será que todos estavam com seus checapes cardiológicos em dia? Amigo era amigo, filha-da-puta era filha-da-puta. Um cuidava do outro. Aguardava ansioso pela entrada do Macca. Tinha visto fotos recentes dele durante a apresentação surpresa que aconteceu no Clube do Choro. Nada mau. Parecia um homem de sessenta com RG de oitenta.
“Boa noite, véi…”, foi assim que Paul saudou o público em Brasília. Estava acompanhado pela competente, carismática banda dos últimos vinte anos. Introduziu três músicos para fazer os metais, uma novidade que agregou ainda mais valor ao espetáculo. Com a ajuda da Inteligência Artificial, fez um dueto impensável com John Lennon em “I’ve got a feeling”, um dos pontos altos da apresentação. Paul não cansava de inovar. Nem de cantar. Claramente, não se tratava de uma questão de dinheiro. Era um homem riquíssimo. Tinha a ver com o reconhecimento e com a troca de afeto. Suponho que Paul McCartney se sentisse mais jovial e mais produtivo rodando pelo mundo, na ativa, disseminando o legado artístico pessoal e dos antigos colegas de banda.
O show durou quase três horas. Macca segurou firme o rojão. Alternou os instrumentos. Contou histórias já conhecidas. Repetiu as gagues. Homenageou os antigos parceiros de banda que já tinham morrido. Não fez intervalo. Não demonstrou cansaço. Não bebeu água. Não reclamou de nada. Errou a introdução de uma canção e teve que recomeçá-la. Perfeito. Paul McCartney era imperfeito como qualquer um de nós.
O espetáculo se aproximava do final. O coro do público em “Hey Jude” transformara-se numa catarse coletiva. Era a sexta vez que eu via o meu ídolo em ação no palco. Idolatria em estado de graça. Sentia um misto de orgulho e de melancolia também. Eu tinha um sentimento. Um sentimento profundo que não conseguia esconder. Eu não sabia como definir Paul McCartney em palavras. Faltavam-me os adjetivos. Quem sabe, em parte, o mentecapto que palestrara do lado de fora do estádio estivesse mesmo com a razão: o ex-garoto de Liverpool, no auge dos seus oitenta e um anos de idade, não era um ser desse mundo.
Voltei para o hotel esperançoso de que a velhice fosse mais do que uma questão cronológica. Tinha a ver com humor e com estado de espírito. No final das contas, me sentia reconfortado. Se fosse para envelhecer, que fosse como Paul McCartney.