Na Netflix, uma aula magistral de suspense que aperta a garganta e dá um nó no estômago

Na Netflix, uma aula magistral de suspense que aperta a garganta e dá um nó no estômago

O detetive Yuji Kudo pode ter sido um Frank Serpico algum dia. O personagem vivido por Junichi Okada em “Dias Difíceis” quiçá também encarnasse, como o protagonista de Al Pacino no filme de Sidney Lumet (1924-2011), o avesso do sistema, mas por recear ser neutralizado pela banda podre — e convenientemente entregue a seduções que não tardam a cavar um abismo a sua volta —, começa a pautar sua conduta pelo cinismo pragmático de minimizar os efeitos de qualquer possível contratempo num ofício cheio de altos e baixos, em que uma decisão errada num momento de tensão extrema implica mudanças severas — e quiçá irreversíveis — em sua rotina, seus hábitos, sua saúde, em sua vida.

Sempre se pode fazer a coisa certa, de acordo com o que se assiste no longa de Lumet, cujo roteiro, de Waldo Salt (1914-1987) e Norman Wexler (1926-1999), é inspirado no livro homônimo de Peter Maas (1929-2001), malgrado Serpico seja vítima de toda sorte de perseguição justamente por sua probidade.

Michihito Fujii, por seu turno, não tem o menor interesse em emular a falsa santidade do tira mostrado por Lumet, falsa porque Serpico não é nada mais que um homem zeloso de suas funções que deseja cumprir o que dele espera a sociedade sem desvios de nenhuma ordem. Aqui, não há lugar para mártires.

O tema é tão vasto que parece nunca se esgotar e vai se sucedendo na centenária história do cinema. “Dias Difíceis” já fora levado às telas, em 2014, pelo diretor sul-coreano Kim Seong-hun — com uma ligeira alteração, para “Um Dia Difícil”, o mesmo título usado por Régis Blondeau em 2022. No trabalho de Fujii, o anti-herói de Okada se vê presa de uma armadilha que ele mesmo concebera. No dia 29 de dezembro, voltando de uma diligência suspeita, ele estaciona o carro numa rodovia isolada numa noite de chuva torrencial e recebe uma ligação da esposa, que diz precisar dele. Na outra linha, o chefe também o solicita; sem pensar duas vezes, ele encerra a primeira chamada e o atende, para ouvir que o esquema de subornos na delegacia em Aihara, onde dá expediente, foi descoberto e já foi para os jornais.

A mulher torna a ligar, agora para avisá-lo de que a mãe dele acaba de morrer, e depois de alguns murros no painel do automóvel, ele dá a partida e arranca. Fujii encontra a ocasião perfeita para apurar o suspense da narrativa ao colocar na estrada uma pessoa correndo, vinda sabe Deus de onde, da qual Kudo desvia. Mais um vulto aparece, e este é colhido pelo policial e sua fúria atávica. Sai para prestar socorro, mas já é tarde; ele arrasta o cadáver até o porta-malas, quase é flagrado pela patrulha policial, mas se livra, para, na sequência ser parado. Eminentemente sombria ao longo de 118 minutos, com predomínio do cinza-chumbo e do azul petróleo, a fotografia de Keisuke Imamura frisa o humor macabro, ora sutil, ora desabrido, a fim de cravar o absurdo dos momentos elaborados pelo roteiro do diretor e Kenya Hirata, lembrança de que, por maior que tenha sido a perícia refinada por Kudo na arte de transportar corpos, atropelar a lei não costuma restar impune no Japão.

Todo o segundo ato é a preparação para o flashback que explica boa parte do envolvimento do detetive-bandido nas trapalhadas que implicam-no em perseguições violentas, opróbrios ultrajantes, surras em becos escuros, em especial depois que Takayuki Yazaki, o outro justiceiro, interpretado por Gō Ayano, entra na história. O equilíbrio insólito dessas duas metades — irregulares, mas autônomas — é o que faz “Dias Difíceis” não restar mero pastiche de nenhum dos antecessores, uma vez que exalta a hipocrisia e a negligência de quem teria o dever de espelhar o bem. Fujii não se acovarda diante de patrulhas, mas isso pode ser só uma modalidade torta de doutrinação. Mormente quando a yakuza chega bem perto.


Filme: Dias Difíceis
Direção: Michihito Fujii
Ano: 2023
Gêneros: Drama/Suspense
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.