A culpa pela derrocada do futebol brasileiro é dos jogadores que fazem as sobrancelhas

A culpa pela derrocada do futebol brasileiro é dos jogadores que fazem as sobrancelhas

Gostava quando Serginho Chulapa dava no meio dos caras. Quando o Rivelino escorregava pelas escadarias do vestiário do Maracanã fugindo da perseguição dos uruguaios. Quando o Garrincha entortava os gringos. Quando Ronaldinho Gaúcho tinha os dentes tortos e fazia dribles desconcertantes. Gostava quando o Sócrates deixava a bola de lado para falar de democracia. Quando Telê fazia a seleção jogar por música. Quando Romário se intitulava Deus. Quando Deus era brasileiro. Quando Pelé tentava outro gol memorável e errava. Gostava quando não tinha o VAR. Quando Margarida desmunhecava dentro das quatro linhas. Quando Maradona fazia gol de mão. Gostava quando Zico matava coruja na forquilha. Quando Roberto Dinamite implodia as defesas adversárias. Quando Ronaldo Fenômeno estourava o tendão da patela em busca da glória. Gostava quando zagueiro zagueirava.

Quando os artilheiros pulavam o muro da concentração para tomar cerveja e comer torresmo. Quando os craques faziam sexo antes de uma final de campeonato. Gostava da bola chutada pro mato numa época em que jogador de futebol não fazia as sobrancelhas, dava entrevista num português ruim e alegrava a galera nos estádios.   

Andava no estágio de tolerância mínima com os pernas-de-pau que se julgavam verdadeiras sumidades. Pode parecer frescura, mas, eu tinha prometido nunca mais assistir aos jogos da seleção brasileira. Mas, sabem como é, não sou um sujeito confiável. Era Brasil versus Argentina. O maior clássico da América Latina. Lá estava eu, estatelado sobre o sofá de couro de bolsominion, assistindo a meia hora de tretas, de socos e de pontapés entre torcedores bestializados que ocupavam as arquibancadas do Maracanã. “Por que ainda gasto o meu tempo de forma assim tão perdulária?”, ficava me indagando enquanto entornava talagadas de Cuspe Sour.

Abilolados com as inacreditáveis cenas de selvageria mostradas em tempo real, a equipe que transmitiria o espetáculo (?!) lucubrava sobre quem seria o responsável pela deplorável baderna que atrasava o início da partida. A FIFA. A CBF. Os stewards — o que seriam stewards? A polícia militar. O azar. O forte calor que fazia no Rio. Tive tempo suficiente para mudar de ideia, para criar juízo, para desligar a TV e ir para a cama fazer neném, mas… Isso a Globo não mostrava: havia uma leva de trouxas garantindo os altos índices de audiência.

A bola rolou. A patroa rolou de lado e dormiu. Não a culpava: o nível de futebol apresentado pela seleção e a minha apagada companhia davam mesmo um sono danado. No frigir dos ovos, deu Messi: Argentina um a zero. Fui para o quarto. Como cantava Belchior, estava mais angustiado que um goleiro na hora do gol. Aproveitei a insônia para fazer uma análise silente, pormenorizada, a respeito da má fase do futebol brasileiro que já durava mais de vinte anos. Por onde andavam “a graça, o talento e a magia do futebol brasileiro”, nos dizeres do saudoso locutor Luciano do Valle?

A despeito da suave embriaguez, eu concatenava teorias na minha cachola. Peladinhas de rua. O que sucedera com elas? Onde, a pirralhada? Já fazia muito tempo que as ruas, as praças e as várzeas tinham sido substituídas pelas escolinhas de iniciação esportiva que ensinavam as crianças a se condicionar fisicamente, a marcar duro, a não dar espaço, a não deixar o adversário jogar, a obedecer rigorosos estratagemas coletivos que visavam a, primeiramente, não tomar gols e, na sequência, quem sabe, com a ajuda de Deus, a marcar pelo menos um. Retranca me dava nos nervos.  

Sem sono, sem sexo, sem nexo, entrei com bola e tudo naquelas incômodas reflexões madrugada adentro, como se o futuro do esporte dependesse das minhas lucubrações acerca do marasmo e da má qualidade. Era fato que, nas últimas décadas, a violência tinha transformado as cidades, limitando que a molecada chutasse bola em logradouro público, por medo de ser atropelada por um boçal ou de tomar bala perdida nas costas. Eu também debitava a escassez de jogadores talentosos ao insidioso, danoso efeito high tech, representado pelos jogos eletrônicos, pela internet e pelo advento dos moderníssimos smartphones que, de certa forma, anulavam o desejo da meninada de correr atrás de uma bola.

A indignação não permitia que eu pegasse no sono. Constatei que os melhores jogadores não jogavam no Brasil, mas, noutros países, digamos, mais ricos e mais desenvolvidos. Portanto, quem podia garantir que esses atletas não estivessem alienados quanto ao que sucedia no cotidiano sofrido e lascado do povo brasileiro que adorava futebol. E tinha mais: a migração dos atletas brasileiros transformava antigos rivais em verdadeiros amigos, uma vez que jogavam juntos, defendendo os mesmos times, nos principais torneios da Ásia e da Europa. Fosse hoje, nesse contexto globalizado, Rivelino jamais seria caçado em campo como sucedeu em 1976, no famoso jogo contra o Uruguai, quando teve que fugir para não tomar uma sova.

Eu tinha certeza de que o destino nos reservava um pouco mais de frustração e desgraça, por causa da excelência dos jogadores canarinhos em confrontar a arbitragem, em forjar agressões, em saltitar feito pipoca, como se afetados por crises convulsivas. Castigo pouco era bobagem para jogador de futebol que tapava a boca com a mão, a fim de esconder as palavras, evitando a leitura labial. Uma coisa me irritava mais do que a marra e a incompetência: a falta de personalidade daqueles sujeitos.

Dinheiro. O pior de tudo, para variar, era o diabo do dinheiro falando mais alto, estragando a essência das pessoas que pareciam esquecidas da sua origem pobre, humilde, do seu passado de luta e de superação até encontrar fama, reconhecimento e fortuna. Parecia deprimente que um atleta célebre tivesse a sua carreira profissional gerida por coachs picaretas, por influenciadores digitais sem conteúdo e por empresários gananciosos que jamais pisaram num gramado de futebol.

Estava mesmo bolado. Quando, finalmente, peguei no sono, acabei sonhando com flashes dos períodos áureos do futebol, quando a seleção canarinho encantava o mundo com artimanhas particulares do tipo: o drible da vaca, a bicicleta, a folha seca, a embaixadinha, a caneta, o lençol, o bonezinho, a tabelinha, o chuveirinho na área, a mania de usar substantivos no diminutivo, o overlapping, a lapada na bola, o voleio, a trivela, o gol espírita, o placar elástico e a vitória inconteste. Restava-me a lembrança de glórias passadas e a hegemonia brasileira há tempos perdida.

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a Revista Bula há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente Bipolar, uma antologia de contos e crônicas.