O suicídio assistido de Godard é uma metáfora para a morte do Ocidente Foto / Denis Makarenko

O suicídio assistido de Godard é uma metáfora para a morte do Ocidente

A morte do cineasta Jean-Luc Godard, aos 91 anos, por suicídio assistido representa uma metáfora perfeita para o destino do Ocidente. Segundo familiares, “ele não estava doente, estava simplesmente exausto”. Quem poderia dizer que esse não foi um fechamento perfeito para sua vida e obra, quase que uma performance artística final, um manifesto estético e político final? Seu trabalho sempre questionou os padrões civilizacionais estabelecidos. Neste momento em que o Ocidente, e a França de modo particular, questiona cada vez mais seus valores, a opção de partida de Godard é sintomática.

Jean-Luc Godard não tem fãs. Tem estudiosos. É como Hegel ou Kant, que não têm leitores, têm eruditos especializados. Ninguém lê “Fenomenologia do Espírito” ou “Crítica da Razão Pura” para matar tempo em uma tarde chuvosa. O mesmo acontece com alguns trabalhos de Godard, como “Filme Socialismo”, “Nossa Música” e agora com sua experiência com a tecnologia 3D “Adeus à Linguagem”. Nem sempre foi assim. Assisti-lo já foi moda obrigatória entre os jovens que se consideraram politizados. O que incluía multidões e mais multidões nos anos 1960. Não assistir filmes como “O Desprezo”, “A Chinesa” e, sobretudo, “Acossado” era estar fora da rodinha de conversa na faculdade e nos bares da moda. Hoje, tudo mudou. É preciso razões acadêmicas, profissionais ou gosto pela cinefilia para alguém se dispor a vê-los.

Ao mesmo tempo, ninguém nega a importância da obra de Godard. Sua impenetrabilidade conscientemente construída gerou um dos mitos mais fortes da história do cinema. É verdade que, eventualmente, uma voz dissonante se levanta, acusando-o de ser uma farsa, um charlatão. Porém, o culto oficial segue mais forte do que as heresias. Não raro os furos de roteiro, deficiências técnicas, erros de continuidade e inverossimilhanças de seus filmes são interpretados como originais achados estéticos. A lenda em torno de seu nome é tão elaborada que o diretor Laurent Tirard, no texto introdutório à entrevista de Godard no livro “Grandes Diretores de Cinema”, não teve pudores em escrever que “devo reconhecer que até hoje jamais encontrei nenhuma outra pessoa que se aproximasse tanto da ideia que eu tinha de um gênio”. Lembremos que Martin Scorsese, Bernardo Bertolucci, Pedro Almodóvar e Woody Allen também figuram no livro.

Jean-Luc Godard, no Festival de Cannes de 2001 | Foto: Denis Makarenko

Nesse cenário, como interpretar “Adeus à Linguagem”? O que podemos identificar como enredo é dos mais simples: os encontros e desencontros, além das conversas altamente PIMBA (pseudointelectual metido a besta), de um casal de amantes, sempre às voltas com um cãozinho. A realização é das mais complexas: citações literárias e filosóficas servidas fartamente, imagens sobrepostas, saturação de cores, paisagens filmadas sem pressa, despreocupação com clareza ou cronologia narrativa. Tudo muito Godard. Um item novo: o 3D. Como o mestre se saiu no uso desse novo elemento? Parece-me que Godard não refletiu muito sobre como fazê-lo funcionar na estrutura interna do filme. Basicamente apontou a câmera para o que pretendia filmar e filmou, só que agora em três dimensões. Salvo nos poucos felizes momentos onde para cada olho é exibida uma imagem diferente, precisando que o espectador escolha qual quer ver enquanto assiste ao filme: seu uso do 3D não é exatamente original ou possui função narrativa. Godard basicamente traz os elementos principais da cena para o primeiro plano. Só. Qualquer filme de super-herói ou desenho animado faz isso, na maioria das vezes com mais apuro técnico.

A favor de Godard está o fato de que, até então, pouquíssimos cineastas conseguiram aplicar o 3D para além do fetiche visual. Os exemplos mais notáveis, talvez únicos, são James Cameron, com a sensação de imersão na natureza que introduziu no narrativamente fraco “Avatar”, e Martin Scorsese, na construção da movimentação dos personagens e objetos de cena em “A Invenção de Hugo Cabret”. Talvez a idade tenha pesado. Godard está com 85 anos e, apesar de “gênio”, ao ritmo de quase um filme por ano é sempre complicado estar atualizado. Não é fácil. Peter Jackson, um cineasta jovem e fascinado por tecnologia, teve dificuldades para dominar a técnica dos 48 frames por segundo, como ficou evidente no primeiro filme da trilogia “O Hobbit”. Por que exigir mais de Godard, que, possivelmente, já revolucionou o que tinha para revolucionar? Afinal, não se exige que Colombo descubra duas Américas.

Em certo sentido, Godard é uma relíquia da década de 1960. Foi um dos principais nomes do movimento artístico Nouvelle Vague, ou Nova Onda em francês. Aparentemente, a expressão foi lançada por Françoise Giroud na revista “L’Express”, em 1958, para referir-se à novidade representada por um grupo de jovens cineastas franceses que, sem grande apoio financeiro, realizavam seus primeiros filmes, marcados pela transgressão aos elementos estabelecidos pelo cinema comercial. O marco inaugural do movimento foi “Nas Garras do Vício” (Le Beau Serge), de Claude Chabrol. Logo em seguida, em 1959, Godard, até então conhecido como um virulento crítico da revista “Cahiers du Cinéma”, apareceu com o estranhíssimo “Acossado” (À Bout de Souffle). Um filme rodado pelas ruas de Paris, dispensando cenários elaborados, com câmera na mão, cortes brutos na ação e nos diálogos (jump cuts), interação dos atores com a câmera, final infeliz etc. Uma verdadeira revolução na linguagem. Já em seu filme de estreia, aos trinta anos de idade, Godard foi louvado como o novo garoto prodígio das artes francesas. Nunca mais deixou o posto. Louvado por obras como “Bande à Part”, cada vez mais independente dos colegas do Nouvelle Vague, fazendo praticamente um filme por ano, muitas vezes dois ou três, Godard chegou à década de 1980 como a encarnação ideal do cineasta-autor. Personagem que ele mesmo ajudou a cunhar, a lado de François Truffaut, em seus tempos de crítico. Foi quando decidiu tornar-se um evangelista.

Recontar a saga de Jesus de Nazaré, a chamada “maior história de todos os tempos”, tornou-se quase uma obrigação intelectual entre os modernos narradores de “estórias”. Em se tratando de escritores, José Saramago, Norman Mailer, Robert Graves, Anthony Burgess, Nikos Kazantzakis, Gore Vidal e Charles Dickens são casos exemplares. No cinema temos, entre outros, o pioneirismo de Cecil B. DeMille, o gigantismo de George Stevens, a carolice elegante de Franco Zeffirelli, o naturalismo marxista de Pier Paolo Pasolini, o auto de fé incompreendido de Scorsese, o sadomasoquismo de Mel Gibson e a beleza irônica de Nicholas Ray, um dos ídolos de Godard. Sabe-se que Chaplin e Orson Welles planejaram, sem sucesso, filmar suas versões. Seguindo essa longa tradição, Godard lançou em 1985 seu filme mais polêmico: “Je Vous Salue, Marie”, uma versão modernizada do início da trajetória da sagrada família. O título, não traduzido do francês, significa “eu vos saúdo, Maria”. Na época do lançamento, o papa João Paulo II mostrou-se chocado com seu conteúdo, afirmando que o filme “atinge profundamente os sentimentos religiosos dos fiéis”. Acabou proibido no Brasil pelo governo Sarney, sob a alegação de que ofendia as concepções religiosas católicas.

A reação da Igreja e da opinião pública, embora esperável, como de hábito, foi exagerada. A narrativa de “Je Vous Salue, Marie” é hermética, contemplativa e bucólica. Dificilmente faria grande plateia. O escândalo multiplicou-a. Pode-se afirmar que Godard, embora tenha passado longe de ser purista, foi extremante respeitoso com o material original. Sua Maria é uma virgem quase sempre vestida de branco, com lâmpadas de banheiro servindo de auréola. Seu José, apesar das tentações da carne, aceita viver um amor platônico com a própria esposa. Seu menino Jesus é um protótipo de messias dos mais promissores. A única figura destoante é do arcanjo Gabriel, interpretado com fúria por Philippe Lacoste. Sempre acompanhado por uma menina que o chama de tio, é um personagem de forte presença cênica: truculento, boca suja, impaciente com as fraquezas e falta de fé dos mortais. Imagino que se anjos existissem, seriam mesmo assim.

A todo o momento, sem aviso prévio, Godard coloca na tela um letreiro escrito “en ce temps-là”, “naquele tempo”. Qual tempo? O passado e o presente. O Gênesis e a Natividade. Para Deus (Godard?) mil anos e um minuto são a mesma coisa. Duas narrativas se entrelaçam no filme. A primeira é a de Maria, interpretada por Myriem Roussel, uma jovem jogadora de basquete amador que trabalha no posto de gasolina do pai, e a de seu namorado José, interpretado por Thierry Rode, um taxista que transporta todos os personagens do filme. Os dois alimentam um relacionamento em crise permanente que quase desaba quando Maria se descobre grávida, mesmo sendo, ou dizendo-se, virgem. José, compreensivamente, a acusa de traição. Porém, acossado por um Gabriel brutamontes, que o chama de “furo na bunda” enquanto lhe dá tapas no rosto, o taxista é convencido de que seu orgulho ferido de macho é irrelevante diante dos planos divinos, levando-o a aceitar seu papel de padrasto de uma criatura miraculosa. A segunda linha narrativa trata do problemático relacionamento entre João, um excêntrico professor de ciências, que defende que a vida na Terra é de origem alienígena, com sua aluna Eva. Uma jovem Juliette Binoche em início de carreira, rouba a cena como Julieta, rival amorosa de Maria.

O enredo passa-se em Genebra, cidade onde Martinho Lutero iniciou a Reforma Protestante. Não foi uma escolha aleatória. O filme trata do nascimento em um sentido de renascimento, do renascimento em um sentido de reforma; quiçá tentativa de corrigir um cristianismo que foi deturpado da primeira vez. Genebra possui esse eco, lembrando-nos da concepção teológica de Lutero de que as sagradas escrituras devem e podem ser livremente interpretadas. A música de Bach, suprema contribuição artística do protestantismo, domina a trilha sonora. “Tocata e Fuga” ou “Jesus, Alegria dos Homens”, dentre outras, se fazem ouvir para imediatamente desaparecer sem afetar o conjunto da ação. Como a vida na Terra. Inúmeras tomadas do Sol e da Lua lembram-nos o quanto a existência humana é efêmera diante do tempo profundo da geologia, astronomia, biologia etc. “Je Vous Salue, Marie” alcança o máximo de sua inofensiva proposta iconoclasta quando sugere, discretamente, que as concepções virginais das duas Marias, a antiga e a nova, tenham sido obras de extraterrestres. Gabriel, chegando do céu de avião (nave espacial?) e fazendo a Anunciação de táxi, seria um arauto dos alienígenas. O homo sapiens seria o resultado de um experimento genético. O Cristo, um tipo de mutação controlada, regida ao estilo de “Os Meninos do Brasil”. A cena do cubo mágico montado às cegas, expõe a evolução como um jogo de cartas marcadas. Deus não joga dados — disse Einstein. Eram os deuses astronautas? — perguntou Erich von Däniken.

Eva e Maria representam contrapontos diretos. Eva, cujo nome emula o mito do Gênesis, oferece uma maçã ao professor, iniciando uma relação ardente, mas fadada ao fracasso, ao acúmulo de dívidas. Maçã?! Existe algo mais óbvio?! Godard sempre gostou de clichês. Usou-os como combustível de sua originalidade, desconstruindo, sobretudo, o cinemão de Hollywood, como fez em “Alphaville” com a ficção científica e os filmes de detetive.

Maria, ao contrário, precisa refrear seus desejos em nome de uma missão maior do que ela mesma. O final, feliz ou infeliz, dependendo do ponto de vista, lhe escapa. Godard mostra sua protagonista em luta constante pela abstinência, tentando prover a coexistência do corpo e do espírito. É tristemente resignada com sua condição de, como escreveu Fernando Pessoa em “O Guardador de Rebanhos”, “mala em que Ele tinha vindo do céu”. Em uma sequência de monólogos interiores, durante noites de insônia, conclui que é “uma alma prisioneira em um corpo”. Chama Deus de “vampiro que me fez sofrer” e “um medroso, um covarde que não luta”. Reclama, mas não desobedece. As cenas que causaram escândalo seriam absolutamente banais se Maria não fosse Maria. Ela joga basquete, ela se olha nua no espelho, ela toma banho, ela se toca, ela vai ao ginecologista, ela se mostra para o filho. Sua nudez não é diferente daquela das figuras pintadas por Michelangelo no teto da Capela Sistina. Literalmente, a maldade está nos olhos de quem vê.

Quando seu filho nasce, no campo, cercado de animais (outro clichê!), começa uma nova etapa da missão. Maria acompanha seu crescimento, aguardando os sinais. Eles não demoram a acontecer. O pequeno Jesus chama seus colegas de brincadeiras de Pedro e Tiago, nomes de apóstolos. Recusa-se a obedecer a José, saindo correndo por um parque aos gritos de que precisa cuidar dos “negócios de seu Pai”. Qual pai? O Pai? O menino se apresenta como “aquele que é”. José ainda não compreendeu exatamente quem é o pequeno rebelde.

Diferente de Maria. O que sublinha a cena final, onde ela retira um batom vermelho da bolsa, passa nos lábios, como que dizendo “está consumado: agora vou viver minha vida”. Há tempo, muito tempo para viver. Nesse momento, Maria não está pensando que seu filho vai crescer, aparecer e sofrer sua dolorosa Paixão. Ou não? A tragédia se transformará em farsa, como apregoava o notório ateu Karl Marx? Se “a maior história de todos os tempos” estiver mesmo se repetindo, ela será testemunha ocular da morte do filho. Estará tão próxima que poderá ouvir seu último suspiro. Vai ouvi-lo lamentar ter sido abandonado pelo Pai. Pai que Maria não conheceu. Em nenhum dos sentidos.

Ou pode acontecer o contrário. Essa criança, assim como Godard, e assim como o Ocidente que a criança deveria “construir”, pode negar o destino violento da Paixão e decidir partir por estar “simplesmente exausta”. Pode existir tragédia maior do que uma civilização cansar de si mesma?  

Ademir Luiz

É doutor em História e pós-doutor em poéticas visuais.