Super-heróis adaptam-se ao mundo em que são concebidas suas releituras, e o Batman de Matt Reeves é, de longe, o que mais se aproxima deste triste e desatinado século 21. Em cada um de seus filmes, insanos, meticulosos, bonitos, Reeves encontra um jeito de exercitar sua veia distópica, cínica, niilista, e em “The Batman”, o diretor mergulha com boa reserva de fôlego no universo de um homem contaminado pela melancolia patológica que faz questão de alimentar, preso na torre de marfim que ele diligentemente construiu.
Seu filme consegue ser um apanhado do que de melhor o cinema produziu ao longo de mais de cem anos e, ao mesmo tempo, não transige quanto a ser afrontosamente original, inventivo, revolucionário até, congraçando poesia, filosofia e técnica, sem que uma tenha de se sobrepor à outra. O efeito é um trabalho corajoso, parecido com dramas noirs dos anos 1960 — não por acaso de onde vem “Batman: O Filme” (1966), a primeira adaptação dos quadrinhos de Bob Kane (1915-1998), pelas mãos caprichosas de Leslie H. Martinson (1915-2016) e Bill Finger (1914-1974) —, mas abusando de tudo quanto a tecnologia tem a oferecer-lhe.
Quando uma história feito a de “The Batman” transcende o mote original, fazendo com que ninguém se recorde de que aquilo principiou como uma aventura um tanto mambembe de uma editora obscura no fim dos anos 1930, tem-se a certeza de se estar diante de uma obra de arte. Hoje, só iniciados se recordam da lendária DC Comics ao assistir a uma história encabeçada pelo Cruzado da Noite, e raras são as vezes em que se conseguiu abafar por completo a figura em todos os sentidos pesada, untuosa, desse sujeito casmurro, de poucos amigos, outrora um humanista, porém mais e mais imprevisível e arredio.
Intérpretes, diretores, roteiristas e estúdios, nessa ordem, em poucas ocasiões alcançaram a proeza de fazer do Homem-Morcego algo mais que um caça-níqueis e uma válvula de escape para nerds sonhadores e meio frustrados, e a parceria de Christian Bale e Christopher Nolan, em “Batman: O Cavaleiro das Trevas” (2008), e “Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge” (2012), presta-se a um divisor de águas no histórico do personagem. Os Chris reinaram absolutos no panteão dos semideuses da tela grande, mas impérios costumam ruir, e é nessa hora que surge Robert Pattinson. Falar do mento anguloso de Pattinson, milimetricamente esculpido pela natureza poderia vir a ser uma questão — em mais de um episódio, esse critério foi sobejamente considerado para a escolha do novo Batman, caso de Ben Affleck, por exemplo (e deu no que deu) —, mas da mesma forma que ninguém se lembra da DC Comics, o espectador não se detém num pormenor tão miúdo, ainda menos na era da harmonização facial.
Pattinson encarna as fraquezas do Cavaleiro das Trevas, nitidamente assustado e assustador, bem mais vilão que mocinho. Ninguém ousa atravessar seu caminho, ou melhor, quase ninguém: Selina Kyle, a Mulher-Gato de Zoe Kravitz, sabe que são feitos do mesmo barro, e não tem nenhum interesse de bancar a vamp, como Michelle Pfeiffer em “Batman: O Retorno” (1992), produzido e dirigido por Tim Burton. As sequências em que aparecem juntos são, a despeito do que Kravitz deixa à superfície, lúbricas e tensas, sobrando algum espaço para os ótimos coadjuvantes, com Jeffrey Wright muito persuasivo na pele do Comissário Gordon e Colin Farrell, irreconhecível como Oswald Cobblepot, também conhecido como Pinguim. Mas o filme é mesmo de Robert Pattinson, um ator sem medo da feiura da vida, disfarçada na beleza, torta ou não, da arte.
Filme: The Batman
Direção: Matt Reeves
Ano: 2022
Gêneros: Ação/Aventura
Nota: 10