O belíssimo e delicado filme com Ben Kingsley que acaba de chegar na Netflix e é uma cura para seu coração Divulgação / Big Beach Films

O belíssimo e delicado filme com Ben Kingsley que acaba de chegar na Netflix e é uma cura para seu coração

Dispositivos eletrônicos poderiam ser uma ferramenta das mais eficazes para aproximar as pessoas, (re)conectando-as umas com as outras, promovendo encontros adiados pela distância, pelo cansaço, pelo medo, fazendo-nos acreditar que há verdadeiramente um propósito em estar aqui embaixo, sobrevivendo a evoluções e revoluções, penando cada qual a sua dor, até que voltemos, enfim, à dimensão que nos iguala a todos.

A tecnologia até se presta a encurtar saudades, prolongar amores, fomentar entendimentos, mas talvez na mesma proporção, os aparelhos todos que nos cercam assumem o controle, nos convencendo de que são eles que os donos do mundo. “Nosso Amigo Extraordinário” é, por óbvio, uma metáfora sobre as solidões, no plural, mormente depois que tudo quanto fizemos de importante, de belo, de heroico não resistiu à bruma corrosiva do tempo, e restamos nós, procurando conferir algum significado ao que antes era engolido pela rotina. Mas o filme de Marc Turtletaub vai além.

O diretor se vale de um argumento fantástico a fim de cutucar no público o admirável monstro da curiosidade, da urgência de conhecer, para que, assim, caiba nos limites do suportável a vida de alguém que já não via mais o sol do próprio espírito.

Milton Robinson vive num universo paralelo. Conforme o filme avança e o roteiro de Gavin Steckler se desenrola, crescem as evidências a respeito da fragilidade emocional desse homem de 78 anos, isolado numa casa grande demais para ele administrar sozinho. Viúvo há algum tempo, Milton tem um filho que nunca vê e uma filha, Denise, de Zoe Winters, uma veterinária sempre assoberbada de trabalho, mas que sempre encontra um espaço na agenda, entre a castração de um gato ou uma cachorrinha recém-parida, para assistir ao pai. Ben Kingsley, para não variar, consegue fazer de um personagem a primeira vista enfaroso um tipo humano simplesmente encantador, destacando as esquisitices do protagonista, aos poucos justificadas por Turtletaub, ao passo que deixa subentendida sua fragilidade, no cabelo em desalinho (que ninguém diz tratar-se de uma peruca), nas roupas amarfanhadas, na barba por fazer. Semanalmente, Milton comparece à Câmara Municipal de Boonton, na Pensilvânia, obcecado em mudar o slogan da cidade e solicitando a instalação de uma faixa de pedestres entre as ruas Frost e Allegheny, e então quem assiste começa a desconfiar que uma sombra de ruína paira sobre aquela alma terna.

O diretor vai levando a narrativa à subtrama de um possível diagnóstico de Alzheimer — que jamais se confirma — quando Denise aparece com uma lata de feijões, tirada do banheiro. No momento em que Milton, na assembleia de moradores, faz as reivindicações de praxe e diz que um óvni destruiu suas azaleias e comedor de pássaros quando caiu do azul, os presentes, entre estarrecidos e paralisados pela comiseração, ignoram-no.

Entram na história outras duas idosas, Sandy e Joyce, as personagens de Harriet Sansom Harris e Jane Curtin, desfazendo a ideia daquela misantropia inabalável do anacoreta. Nenhuma delas quer acreditar, mas diante do serzinho acinzentado e meigo incorporado por Jade Quon num desempenho tão silencioso quanto mesmerizante, só lhes resta dar o auxílio necessário ao vizinho e a seu hóspede indesejado, mas que vai cativando o trio de solitários, a ponto de fazê-los viajar na espaçonave rumo a um outro mundo, uma nova vida.

Nessa quadra do enredo, Turtletaub refuta o previsível e saca da manga o excelente monólogo de Kingsley, dito para Jules, como a criatura fora batizada. Ele poderia ter ido, mas ter vencido, afinal, a barreira que o separava do restante da Terra era algo sublime demais para carregar para outra galáxia, sem que ninguém constatasse sua mudança. 


Filme: Nosso Amigo Extraordinário
Direção: Marc Turtletaub
Ano: 2023
Gêneros: Ficção científica/Comédia
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.