Após o auge da crise argentina em 2001, o escritor Cesar Aira imaginou uma história que capturasse o sentimento do seu país. O romance “As Noites de Flores” (2004) traz a história de um casal de idosos (Aldo e Rosita Peyró) que, para sobreviver, decide fazer entregas de pizzas em seu bairro, na capital Buenos Aires. O serviço de delivery, criado por eles, tinha a novidade de ser realizado a pé. Eles precisam conviver com motoboys ferozes que vivem na correria das ruas de Flores.
A escrita de Aira começa em tom realista, descritiva, e no final descamba para uma versão cyberpunk do dia a dia dos argentinos no bairro aparentemente pacato. Um dos lances irônicos é o narrador fazer uma descrição das estrelas no céu da cidade, para chegar à ideia de chamar uma constelação de “delivery”. O sonho de uma pessoa que olha para o universo tem relação com uma atividade massacrante para quem trabalha nela. A utopia possível é sonhar com o serviço de entregador de mercadorias.
O tempo avançou, e Argentina chegou ao ano de 2023 sem resolver os impasses e as tragédias da crise de 2001. O país virou um grande delivery: obrigado a entregar promessas que jamais serão cumpridas e numa situação tão precária quanto a de um motoboy. Ficou na imaginação do passado a terra moderna, quase ilha no meio de um continente subdesenvolvido. Um lugar que produziu ganhadores do prêmio Nobel, escritores como Jorge Luis Borges e um cinema contemporâneo de alcance global.
Em que esquina do mundo a Argentina dobrou e acabou caindo num abismo? O país teve uma economia do mesmo tamanho dos Estados Unidos no começo do século 20. Tornou-se rica com a venda lã, carne e couro durante a Primeira Guerra Mundial. Há mais de cem anos, é uma nação que se orgulha de ter alfabetizado toda a população. Mas a aura de desenvolvimento se perdeu gradativamente a partir dos anos 1930 e sumiu de vez com o chamado Processo (os governos militares de 1976 em diante).
Tempos atrás, o cineasta Fernando Solanas contou a história da crise argentina de 2001 no documentário “Memorias del Saqueo”. A população que saqueava os supermercados para comer, e os banqueiros que fizeram a pilhagem da economia com uma dívida externa impagável. Riso e desalento tomam conta da tela de Solanas, que se tornou o cronista daquele caos. Outra narradora da tragédia argentina é Beatriz Sarlo, para quem desde 2001 “nada será como antes” no país que um dia se imaginou moderno.
Sarlo anda hoje pelas ruas de Buenos Aires com um caderninho nas mãos. As anotações servem para suas crônicas na imprensa e para futuras livros. O que a encabula nos dias atuais é o fenômeno Javier Milei, o economista das atuais eleições presidenciais. Um sujeito que se intitula anarco-capitalista disputado o comanda do país. A receita de Milei poderia ser um trecho de um romance distópico: fim da moeda argentina, permissão para compra e venda de órgãos humanos, fechamento do Banco Central do país.
“Milei surgiu como um projeto caricatural e grotesco de um líder que fala como um homem comum das ruas e, além disso, lê economia política. Essa mistura impacta seu público. Todos podem compreendê-lo, mesmo que não compreendam nem a importância nem as consequências dos seus discursos. Mas o seu atrativo é que todos podem entendê-lo e confundir seu estilo com estilos populares, mesmo que utilize outro vocabulário. Nesse sentido, Milei é um autocriador eficaz e poderoso que sabe usar e combinar recursos de diferentes origens, porque fala como um garoto da vizinhança intoxicado pela economia política”, escreveu Sarlo.
O incômodo é que os novos políticos dispensam a força física, a ameaça de violência, para se impor. A conquista vem pela identificação com as pessoas — no caso, a disputa pelo voto democrático nas urnas. É como se dissessem no ouvido do eleitor: “eu sei muito bem como sua vida é uma catástrofe, mas isso foi por conta dos outros”. Trata-se de um convite empático para a perversidade, jogando a culpa do inferno nos outros. Tudo isso dito numa linguagem das ruas, popular, vinda debaixo na escala social.
Beatriz Sarlo avança em seu diagnóstico do novo líder popular: “Milei seguiu um caminho de rusticidade desbocada, atribuindo essa característica aos seus potenciais eleitores e pensando que é a arma de que sua política precisa. Milei não quer melhorar aqueles que lidera, porque todo progresso ideológico ou político representa, para ele, um perigo. As massas não precisam ser educadas, porque podem acordar. As massas devem ser mantidas numa situação de escassez de raciocínio”.
Se existissem hoje os personagens Aldo e Rosita Peyró (criados por Aira), eles poderiam ser eleitores do projeto de um mercado anárquico. Há, é verdade, um grau de resignação que os impede de cair no ressentimento. Mas eles são literalmente o público-alvo hoje do projeto surreal para comandar os argentinos. Nem os militares julgados e condenados no filme “1985” tiveram a ousadia de oferecer o que o homem de costeletas enormes está oferecendo à população argentina.