Narrativas de mistério que transcorrem em ambientes restritos, confinando os personagens-suspeitos no mesmo espaço em que serão obrigados a conviver por um tempo muitas vezes indefinido, até que se esclareça o crime que os une, não são propriamente uma novidade. Talvez o exemplo que melhor represente histórias dessa natureza no cinema seja “Festim Diabólico” (1948), onde, claro, Alfred Hitchcock (1899-1980), a um só tempo, vale-se de elementos cênicos como uma corda e uma mesa e de uma condução friamente pensada para oprimir o espectador com o propósito de alongar o mais possível o limite da tensão.
Se no clássico de há 75 anos o Mestre do Suspense fazia pouco de boa parte dos cânones acerca do que deveria ser filmado ou apenas sugerido, em “Amor em Águas Turvas”, o japonês Yûsuke Taki segue os passos do britânico e instiga a curiosidade do público quanto à autoria de um homicídio, mas também a respeito da plausibilidade da relação entre um homem e uma mulher de universos paralelos, o que não deixa de conferir certa leveza ao roteiro de Yûji Sakamoto.
Uma voz em off tece elucubrações acerca das sereias, as criaturas marinhas entre teratológicas e encantadoras que habitam os mares segundo a mitologia grega. Gravuras renascentistas ilustram o texto do locutor, que continua enaltecendo o canto mavioso dessas mulheres-peixe, que, como todos sabemos, levavam muito marujo incauto para as profundezas do mar quando abriam a boca. Quanto mais apaixonados, mais próxima a morte está de nós, e não muito longe dali, no restaurante do MSC Bellissima, um suntuoso cruzeiro de luxo que sai do Japão rumo ao mar Egeu, o paraíso de azuis-turquesa entre a Europa e o Oriente Médio, dois homens asiáticos dispõem de tempo para identificar uma sereia na logomarca da Starbucks ao passo que se queixam da lendária descortesia do antigo capitão.
Enquanto isso, Suguru, o abnegado mordomo do navio, dá conta de suas inúmeras tarefas quando passa por Chizuru, uma dondoca que aproveita suas férias sem muita convicção e nenhum entusiasmo. Ryo Yoshizawa e Aoi Miyazaki são a alma do enredo — ainda que não apareçam o bastante, tragados pela urgência do diretor em mencionar que houve um assassinato (e, por conseguinte, um assassino a bordo) —, ligando o mote de um crime aparentemente sem solução ao caso de amor, inaudito e verdadeiro, de seus personagens. Yō Yoshida, a nova capitã Hatsumi, não é tão mais simpática que o colega afastado, e esse é o atributo que lhe garante que o homicídio de Sohei Kuruma, o milionário vivido por Hatsunori Hasegawa, decerto carece de explicações, o que vai levar às últimas consequências, não por algum senso de justiça, mas que a carreira permaneça alva como seu uniforme. No encerramento, Sakamoto lança mão de um recurso sofisticado para apontar o verdadeiro criminoso, mas, a essa altura, quem assiste só quer saber se Suguru e Chizuru ficam juntos. Um enigma bem mais simples de se decifrar.
Filme: Amor em Águas Turvas
Direção: Yûsuke Taki
Ano: 2023
Gêneros: Comédia/Romance/Mistério
Nota: 8/10