Existe mesmo uma aura de fina magia a circundar aquele tempinho mágico que reserva-nos a vida no último mês de um ano que, não raro, foi feito de grandes tragédias, as que cada um conhece no mais fundo de seu espírito atormentado e corajoso, e aquelas que espalham-se por todo o planeta como um câncer sem a mínima possibilidade de remissão, tanto menos cura, sempre crescendo, sempre maligno. Mas o Natal também é uma época bastante propícia para encontros e reencontros, esperados ou não, e é por aí que “O Melhor Natal de Todos” começa a tomar corpo. Mary Lambert vislumbra a oportunidade perfeita para destrinchar questões espinhosas — e conhecidas de todos, em maior ou menor grau —, a partir de uma amizade firme e, assim mesmo, igualmente conturbada.
Charlotte Sanders e Jackie Jennings já foram o que se chamaria de almas gêmeas, mas esse laço estreito não resistiu às idas e vindas do tempo, esse tirano silencioso da vida e da morte dos homens. Elas seguiram cada qual a sua estrada e não pareciam incomodadas com o fato quase inconteste de que nunca mais se veriam outra vez, até que o destino prepara-lhes uma armadilha inescapável. O texto de Todd Calgi Gallicano e Charles Shyer, sedutor em sua natureza de farsa calculada milimetricamente, coloca Charlotte e Jackie em corners opostos do ringue, numa disputa bastante sui generis. Gallicano e Shyer capturam a atenção do espectador já no prólogo, momento em que fica clara a intenção de balançar as certezas do público. Charlotte lê num cartão de Boas Festas que Jackie, uma amiga de juventude, tem uma vida perfeita — talvez perfeita até demais. Hábil, Lambert estabelece depressa um antagonismo entre suas duas personagens centrais, assimilado e mesmo justificado rapidamente por quem assiste. Heather Graham abusa de expressões faciais sutis, mas certeiras, a fim de deixar clara a indignação com o sucesso da outra, o que, como se vê pouco depois, não tem razão de ser. Os preparativos para a viagem até a casa da irmã de Charlotte chegam ao final e os Sanders deixam Hadley Falls rumo ao norte. Ela, o marido, Rob, o empreiteiro meio atrapalhado de Jason Biggs; e Grant e Dora, os dois filhos interpretados por Wyatt Hunt e Abby Villasmil têm a certeza de que viverão bons momentos — as crianças, em especial, é verdade.
Uma travessura de Grant, no entanto, faz com que eles batam à porta de Jackie, e tudo o que o cartão dizia, para o malcontido desespero de Charlotte é real. Do segundo ato até o encerramento, a diretora brinca com essa necessária hipocrisia dos adultos em nunca deixar tão óbvia sua frustração, mormente quando reconhecem seu fracasso na comparação com a vida alheia. Brandy Norwood rouba a cena em várias ocasiões, malgrado a bondade sincera de Jackie torne seu trabalho perigosamente unidimensional. Mas os bons propósitos e a despretensão de “O Melhor Natal de Todos”, sobretudo em tempos como esses, levam o filme ao coração de quem se propõe a entendê-lo.
Filme: O Melhor Natal de Todos
Direção: Mary Lambert
Ano: 2023
Gêneros: Romance/Comédia
Nota: 8/10