Basta um relance na contracapa para fisgar leitores do pseudônimo mais badalado da atualidade: “De uma das grandes romancistas do século 20, que influenciou autoras como Elena Ferrante, ‘Caderno Proibido’ é um clássico moderno incontornável da literatura italiana”. De fato, Alba de Céspedes ecoa, em muitos aspectos, na escrita de Ferrante. Desde a prosa que te captura, embaraçosamente sincera e inquietante; até a narrativa que privilegia o mergulho na alma feminina e suas ambiguidades, luzes e sombras. É quase como se suas protagonistas fossem Valerias Cossatis da contemporaneidade.
A capa sintetiza seu interior: páginas de autoanálise, numa narrativa de época. É a fotografia antiga de uma mulher sentada, encarando as lentes de Tudor Collins. Parece mirar um espelho (ou te observar?), não fosse pelo detalhe de que sua face está completamente oculta pelo título (“Caderno Proibido”), acima do nome pouco conhecido no Brasil (Alba de Céspedes).
Alba Carla Lauritai de Céspedes y Bertini foi uma escritora ítalo-cubana, nascida em 1911. De nome pomposo e origem abastada, De Céspedes teve uma carreira profícua e politicamente engajada durante e após o período entre guerras. Foi jornalista, dramaturga, romancista, poeta e ensaísta. Trabalhou até sob outra identidade, a “Clorinda”, num programa de rádio ligado à resistência (L’Italia combatte). Em 1944, fundou a revista “Mercurio”, um periódico sobre política, arte e ciências, que publicou, dentre outros, textos de Natalia Ginzburg, Ernest Hemingway e Katherine Mansfield. Ativista política contra o fascismo italiano do pós-guerra, chegou a ter uma obra censurada (“Nessuno Torna Indietro”) e a ser presa pelo regime.
Ao contrário de sua criadora, a protagonista do “Caderno Proibido”, Valeria Cossati, leva uma vida pacata e pequeno-burguesa. Casada há mais de 20 anos com Michele, o marido que a apelidou de “mamãe”, tem dois filhos jovens adultos, Riccardo e Mirella. É dona de casa e secretária num escritório para complementar a renda familiar.
Da mesma forma que, por exemplo, “O Diário de Anne Frank”, “Quarto de Despejo”, de Carolina Maria de Jesus, “Memorial de Aires”, de Machado de Assis, e “A Trégua”, de Mario Benedetti, o romance é estruturado em forma diarística. Está organizado como uma série de entradas no diário de Valeria, do final de 1950 até meados de 1951.
Certa manhã, Valeria volta para casa munida de cigarros e um caderno proibido, de capa preta luzidia. Sabe-se Deus porque, aos domingos, a tabacaria só podia vender, vejam só, tabacos. Mas ela insiste e compra sua pequena contravenção. O curioso é que o ato de escrever lhe soa tão ilícito quanto a aquisição do caderno em si. Por isso, o mantém escamoteado dos familiares: “Seja como for, tenho quarenta e três anos e me parece vergonhoso recorrer a subterfúgios infantis para escrever num caderno”.
À medida que entramos na intimidade dessa mulher, delineia-se um panorama social da sociedade italiana do pós-Segunda Guerra. Os papéis de gênero estão ali exemplarmente reproduzidos. Ressoam dos gestos e falas dos personagens, dos deveres domésticos “naturalmente” atribuídos à Valeria por ser mãe e esposa e da presunção de que suas preocupações se esgotariam em questões práticas. “Se dissesse que estou pensando em um problema moral, ou religioso, ou político, sei lá, eles começariam a rir, caçoando afetuosamente de mim, como na noite em que afirmei meu direito a ter um diário.”
Ao mesmo tempo em que constata o quanto se sacrifica para cumprir tarefas que Michele e os filhos consideram óbvias à sua condição; Valeria tenta manter a coerência e até um certo orgulho nas vestes da “mãe guerreira”: “Essa escravidão se tornou também a minha força, a auréola do meu martírio. (…) Temo que, admitindo haver desfrutado nem que seja de um certo repouso, de uma distração, eu perca a fama de me dedicar à família cada instante do meu tempo”.
Ao longo dos registros, é interessante observar que tanto Mirella (a jovem filha questionadora, que escolhe estudar/trabalhar e apropria-se do seu futuro), quanto Clara (a amiga divorciada, independente e livre), exercem uma espécie de contrapeso em relação às grades moralizantes e convencionalismos incrustados em Valeria. Os conflitos geracionais também estão presentes entre Valeria e sua mãe. É como se ela fosse uma ponte entre Mirella e a avó, formas díspares de viver e pensar o mundo.
Ao passo que a relação com o marido Michele, apesar de afável, é morna e silenciosa. O vínculo do casal encolheu e perdeu o viço atrás dos filhos, responsabilidades e anos de convívio. “Pensava que Michele talvez também tenha fingido dormir algumas vezes. E que desse contínuo fingir dormir e permanecer acordado na própria angústia, sem que o companheiro se dê conta, é feita a história de um casamento exemplar.”
É nítida a diferença dos primeiros para os últimos registros no caderno. Gradualmente, ela assume um tom mais perspicaz e crítico à medida que se familiariza com a escrita. Quanto mais Valeria transborda cotidiano em palavras, quanto mais rumina a vida no papel, num constante exercício de tomada de consciência, mais desbotam as margens de suas convicções. Olhar as fissuras na construção da própria identidade, claro, é perturbador: “Sei que minhas reações aos fatos que anoto em detalhes me levam a me conhecer mais intimamente a cada dia. Talvez existam pessoas que, conhecendo-se, conseguem se tornar melhores; eu, porém, quanto mais me conheço, mais me perco”.
Num curioso atravessamento com Elena Ferrante, o incômodo de Valeria soa quase como as experiências de “desmarginação” de Lila (neologismo criado pela personagem na Tetralogia Napolitana); e parece repercutir em “Frantumaglia: Os Caminhos de uma Escritora”: “Nossa singularidade, nossa unicidade, nossa identidade se racha o tempo todo. Quando, ao final de um dia, nos sentimos destroçadas, “aos pedaços”, não há nada mais literalmente verdadeiro. Se olharmos com atenção, somos os empurrões desestabilizadores que recebemos ou damos, e a história desses empurrões é a nossa verdadeira história”. (Elena Ferrante)
Enfim, este é um livro marcante. Lotado de belas e duras passagens. De Céspedes escava dúvidas, falências, pequenas alegrias, ousadias, culpas e sentimentos contrastantes de uma mulher comum. Em certa medida, a alma exposta de uma italiana dos anos 50 insinua-se a nós, leitores, como um desconcertante espelho.