Na Netflix, um dos filmes mais brutais e impactantes da história do cinema Richard Foreman / Lionsgate

Na Netflix, um dos filmes mais brutais e impactantes da história do cinema

“Sicario: Terra de Ninguém” é uma excelente contribuição do cinema ao debate sobre a onipresença e a onipotência do tráfico de drogas. É impossível dissociar violência e tráfico, e nesse particular, já no prólogo, o filme de Denis Villeneuve, um dos realizadores mais sofisticados da indústria cinematográfica do nosso tempo, faz questão de deixar claro que não tem nenhuma intenção de pegar leve. O roteiro de Taylor Sheridan alude a uma casa sob cujas paredes se escondem mais de três dezenas de cadáveres, todos de pessoas envolvidas em algum grau com modalidades de delinquência relacionadas ao narcotráfico — clientes que nunca pagavam suas dívidas; traficantes que se deixavam apanhar fácil demais; e, claro, policiais que foram se tornando conhecidos por não transigir com o crime. Villeneuve registra essa passagem com o brilhantismo que o define, insinuando que essa é uma frente avessa a protocolos de conduta, o que, por seu turno, dispensa pruridos morais na gestão do negócio. Figurões do submundo que chefiam outras quadrilhas estão no topo da cadeia, seguidos de perto pelos traidores, o que prova que fidelidade é um atributo dos mais valiosos no ramo. E escassos.

Cenário perfeito para a eclosão de incidentes de violência, em que gangues enfrentam a polícia de igual para igual, dispondo do aparato bélico que conseguem mediante o tráfico de armas — para não mencionar a incansável guerra de facções que se digladiam entre si pelo domínio de bocas de fumo assombrosamente rentáveis —, a compra e venda de drogas nutre um mercado que movimenta cerca de novecentos bilhões de dólares ao ano em todo o mundo, o correspondente a 1,5% do PIB mundial ou um terço de tudo o que o Brasil produz ao longo de doze meses. O mal, em sua banalidade ou quando é submetido a mecanismos que o elaboram e o sofisticam a ponto de ser tomado pela mais nobre das ideologias, assume formas ainda mais diversas nas sociedades ao redor de todo o planeta, e a produção e o consumo ilegais de entorpecentes é, sem dúvida, uma das mais conhecidas, seja entre os moradores de um bairro desassistido do subúrbio de uma megalópole qualquer, estendendo seus tentáculos sobre vilarejos perdidos nas zonas rurais de cidadezinhas de países na periferia do mundo, seja cooptando as autoridades para suas fileiras. Conjunturas tão díspares entre si têm em comum o cerco encantatório da droga às populações mais vulneráveis com falsas promessas de ganhos fora do comum e aparentemente fáceis, sobretudo a homens jovens e de escolaridade limitada, quase sempre negros.

Sicários, os zelotes matadores de romanos que invadiam a Judeia no ano 6 a.C., deram lugar aos assassinos de aluguel do México de hoje. A agente do FBI Kate Macy combate esses facínoras atávicos com perícia máxima, e na sequência de abertura, Emily Blunt mostra-se digna de encabeçar a história, à primeira vista só um expoente um pouco menos pasteurizado do cinema macho, nesse aspecto muito semelhante a “A Hora Mais Escura” (2012), de Kathryn Bigelow. A desenvoltura de Macy na empreitada garante-lhe o prestígio com que todo bom policial sonha e ela recebe o convite para integrar a força-tarefa que ambiciona capturar um traficante de drogas poderoso em algum lugar no território americano mais próximo ao país vizinho e fazê-lo responder a um interrogatório nos Estados Unidos. Junto com Matt e Alejandro, os tipos misteriosos vividos por Josh Brolin e Benicio Del Toro, a personagem de Blunt começa a acreditar que existe qualquer coisa de muito suspeito nas atitudes de seus colegas à medida que a operação revela-se um fracasso estrepitoso nos mínimos detalhes.

Villeneuve tem o condão de saber preservar o lastro de suspense e ação da narrativa do jeito mais engenhoso, ao passo que não dispensa as elucubrações de sua heroína, que tanto podem ser pertinentes como fruto de uma personalidade neurastênica, precocemente debilitada pela constância de situações de estresse severo. Não se vislumbra o que exatamente cada um desses tipos significa para o enredo até a grande reviravolta, meticulosamente arquitetada pelo gênio do diretor, sacramento inescapável de que nele nada é gratuito.


Filme: Sicario: Terra de Ninguém
Direção: Denis Villeneuve
Ano: 2015
Gêneros: Suspense/Crime
Nota: 9/10