Daqui a pouco sorrir vai ser ofensa para quem não tem dente

Daqui a pouco sorrir vai ser ofensa para quem não tem dente

Eu não sei por que, mas quanto mais o mundo cresce, mais as cabeças diminuem. E não é microcefalia, é ignorância congruente mesmo. Sim, estamos em processo de evolução, aprendemos a separar o lixo e a não desperdiçar a água — viva o homem moderno! Somos primatas com o dom da retórica comovente e persuasiva, discursamos sobre igualdade e fraternidade, mas, cá entre nós, é tudo da boca para fora. É só para sair bonito na foto. Porque no fundo as pessoas são intolerantes, porque se supõem melhores do que as outras, e porque acreditam ter razões para opinar sobre tudo e sobre todos.

Aqui, na pós-modernidade, ou você cabe numa caixa, ou você está fora dela. E quem está do lado de fora é açoitado por um misto de cólera, indignação e repugnância. Graças — ou culpa — à liberdade de expressão, facilmente confundida com desrespeito, intromissão e soberania. Ao mesmo tempo em que o mundo se desenvolveu, as mentes involuíram, ou simplesmente não acompanharam os novos tempos, que deveriam trazer entendimento e aceitação.

Tudo é politicamente incorreto, indevido, impróprio, indecente. Os apelidos de infância deixaram de ser motivo de graça e embaraço pra dar lugar ao bullying. Sim, o bullying existe, mas existe também uma dramatização e supervalorização do efeito de um apelido. O lixeiro agora é “coletor” e as moças “de vida fácil” são profissionais liberais autônomas do sexo. Não ouse chamar alguém com sobrepeso de gordo, ou você responderá a um processo por isso.

Negros e brancos se ofendem, já supondo um preconceito entre eles. Não abra a boca para falar de religião. Esqueça as piadas de judeu e evite criticar o Papa. Você não pode, não deve, não isso, não aquilo. E, se por descuido ou por costume, se referir a qualquer pessoa ou profissão de uma forma não constitucional, você será punido por isso. Parece uma infame piada de português, de árabe e de argentino. Só que não.

As feministas, os machistas, os gays, os ricos que abominam os pobres e os pobres em rebelião contra os ricos. Nossas crenças, nossa sexualidade, nossos ofícios. Nossas escolhas. Ainda assim, um mundo inteiro mete o bedelho, disseminando aspereza sem a menor necessidade. Tudo é motivo de hostilidade, de protesto e de processo.

A liberdade de expressão veio para confundir os estúpidos. Poder se expressar livremente não dá o direito de insultar ninguém, ainda que nem tudo seja, propriamente, um insulto. Me entende?

Amizades se desfazem porque um não curtiu a foto do outro; pessoas destroem reputações, muitas vezes porque estão insatisfeitas consigo mesmas. Até para falar o que se pensa é preciso bom senso e moderação. Todos têm o direito de verbalizar os seus pensamentos, mas que seja sem afronta. E que as pessoas também não se sintam afrontadas por qualquer motivo.

Daqui a pouco sorrir vai ser ofensa para quem não tem dente e, num mundo de injúrias, generosidade será ato de grandeza de um outro planeta. Um conselho: menos implicância e mais tolerância, menos acidez e mais doçura, menos confronto e mais encontro. “Menos mimimi e mais hahaha.”

Karen Curi

é jornalista.