Os homens são os camundongos de Deus

Os homens são os camundongos de Deus

Fim de expediente. A secretária estranhou o bom humor do médico que assoviava “Il mio nome è nessuno”, de Ennio Morricone, pelos penumbrosos corredores da Clínica Das Tripas Coração. Doutor Canuto estava diferente, animado. Enfim — ele explicou — encontrar-se-ia, em carne e osso — mais carne do que osso, ele supunha — com uma mulher que tinha conhecido numa rede social da internet, onde todos os usuários, ou eram ricos, ou eram influentes, ou eram felizes. Pelas fotos desinibidas que recebia, não restavam dúvidas de que a odontóloga era, no duro, um baita naco de filé mignon. Doutor Canuto, renomado proctologista do condado, tinha o mau hábito de sentir cheiro de merda no ar e de comparar as mulheres bonitas com cortes de carne de primeira, o que não o eximia de se deparar, eventualmente, com intragáveis carnes de pescoço pelo caminho.

Escolada em decepções amorosas, a secretária do esculápio o alertou para que tivesse cuidado. Havia uma malta de golpistas agindo nas sombras da internet para iludir, ludibriar, tapear e arrancar dinheiro das pessoas. Doutor Canuto disse não se preocupe, minha filha, sou um homem vivido e experimentado em romances. Já tinha casado três vezes, portanto, possuía escopo emocional e couro grosso para lidar com a mulherada. “Não caio mais em lábia de vigarista”, disse com empáfia. Inclusive, por garantia, já tinha conversado com a “beldade” — só mesmo o Doutor Canuto para usar um vernáculo do século passado — por meio de áudio e vídeo. Sua interlocutora era real, uma mulher linda, uma teteia, um chuchuzinho, um colosso. A secretária suspirou, concluindo que a vida era osso e que tinha bobo para tudo nesse mundo. “Quem avisa amigo é”, pensou. Então, deu de ombros, acionou o alarme da clínica e aplicou as tradicionais três voltas no trinco da porta dianteira. O médico saiu num Jaguar. Ela seguiu a pé até a parada de ônibus mais próxima, carregando no ombro uma sacola cheia de amostras grátis de medicamentos.

Doutor Canuto barbeou-se, arrancou os pelos das narinas, aplicou um fleet enema, tomou banho morno, passou colônia nos pontos estratégicos, checou a pressão arterial e deglutiu uma cápsula de azulinho verga-tesa. “Melhor pecar por excesso”, calculava. Dirigiu o possante até o Buraco Azul, um pub antiquado onde, diversas vezes, tinha requebrado o esqueleto nos idos tempos da Disco Music, um reduto démodé no qual tinha marcado encontro com a sua amiga virtual. Abraçaram-se como velhos conhecidos em frente ao balcão do bar. Tocava uma balada xoxa do Tias Fofinhas. O ambiente estava à meia-luz, mas, dava para perceber que a mulher era mais bonita pessoalmente, o que deixava o veterano cirurgião mais animado do que um residente extirpando um apêndice supurado.

Pediram para o barman uma garrafa de Cuspe Sour e copos com limão espremido. Ele sentia o velho guerreiro se espremendo, milímetro a milímetro, entre as coxas, à medida que ouvia o prolixo relatório da moçoila, inclusive, de como tinha ingressado na faculdade de direito. “Mas, não era odontologia?”, ficou se indagando. Conversa vai, conversa vem, bateu a vontade de ir ao banheiro. Ela disse tudo bem meu bem não se demore e encheu os copos com Cuspe até a boca.

Demorou cerca de três minutos para aliviar completamente a bexiga, um recorde negativo em termos miccionais. Há tempos, a próstata inchada, combalida, preguiçosa, clamava pelo auxílio de um bisturi. Coisas da vida. Uma lástima. Dedicou as últimas gotas de urina para o santo e para a cueca. Lavou as suas mãos macias de médico. Orgulhava-se das falanges cabeludas com unhas bem aparadas. Checou a aparência no espelho. Com as mãos em concha, cheirou o próprio bafo. Tudo certo. Retirou do bolso um pincel atômico e escreveu na portinhola repleta de palavrões: “Os Homens são os camundongos de Deus”.

Ao caminhar de volta para o bar, percebeu que um sujeito conversava com a jovem. Ela retribuía ao assédio com risinhos. Pensou em partir para a ignorância, mas, lembrou-se de que era velho demais para se meter em confusão, para suportar os arroubos violentos dos bíceps de um mancebo marombado. O abelhudo caiu fora assim que percebeu a sua aproximação. Doutor Canuto quis saber quem era o cara, mas, ela disse que o cara não era ninguém. Pediram mais uma porção de barriga-de-porco frita com mandioca cozida, tradicional petisco da casa. Ela comentou que chegara a sua vez, que precisava ir ao toalete retocar a maquiagem. E sumiu no breu do pub, soltando um rastro de perfume pelo caminho que deixava todos os presentes — homens e mulheres — ruminando um peculiar interesse.

Não se lembrava de nada. Acordou nua, num quarto de hotel, dividindo uma cama king size com três homens jovens, desconhecidos, todos também sem roupa. Dormiam profundamente. Um deles roncava de olhos esbugalhados. Pareciam comatosos. Não fazia ideia de como tinha ido parar naquele lugar e quem eram os acompanhantes. Levantou. Sentiu uma breve vertigem. Vestiu-se o mais rápido que pode, tomando cuidado para não acordar os estranhos. Puxou o zíper do vestido com enorme dificuldade. Pisou em bitucas de Jeronimo’s. Tropeçou em garrafas vazias esparramadas pelo assoalho. Abriu a porta com cuidado. Desceu correndo quatro lances de escada até atingir a calçada. Para baixo, todo santo ajudava.  

O movimento de pessoas na rua era intenso. A constatação de que fora acometida por uma amnésia lacunar a consumia. Checou os rins. Abriu a bolsa. O dinheiro, os cartões de crédito, as chaves de casa, o celular, a Beretta e o batom ainda estavam lá. Não fora roubada. Parecia estar noutra cidade. Confusa, cambaleou até uma banca de revistas. Pediu um copo de água com bolinhas. Explicou ao vendedor que havia se perdido e que não reconhecia aquele lugar. Enquanto o rapazola lhe dava as coordenadas, deparou com a manchete de um jornal sensacionalista dependurado na estante: “Médico renomado é encontrado morto no porta-malas de um Jaguar”.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.