Houve uma era em que o romance se constituíra no produto mais popular de Hollywood. Hoje, as comédias românticas pululam, mas os dramas românticos que devem ser levados em conta, capazes de sustentar uma história pela força do argumento que reza que o amor supera qualquer dificuldade, ultrapassa todos os obstáculos e supre carências afetivas de outras ordens são escassos e quase sempre ambientam-se em distantes tempos idos, justamente porque, numa época em que se acha sexo em toda parte, o amor perdeu muito do impacto que costumava produzir, querendo-se ou não. Por entender o sentimento amoroso como o maior professor que alguém pode ter na vida é que “O Despertar de Uma Paixão”, inspirado no livro do britânico William Somerset Maugham (1874-1965) publicado em 1925, consegue manter sua importância como obra de arte, prestando-se a estimulante intelectual como poucos filmes conseguem ser.
A leitura do diretor John Curran para o romance de Somerset Maugham é precisa ao manter o cerne da trama. Os pais de Kitty, a personagem de Naomi Watts, estão muito mais incomodados com sua pecha de solteirona do que ela mesma. Filha mais velha de um cientista e uma mulher que abdicou de possíveis sonhos para servir ao marido — como faziam todas as moças de bem da década de 1920, quando transcorre o enredo —, seus pais querem para ela o destino que seguem as outras garotas, sendo que ela já não é mais tão garota, nem vê nada de escandalosamente inaceitável em não ter marido quando sua irmã caçula já disse o sim. Até que sua mãe começa a estender a mais pessoas os comentários ferinos que fazia sobre ela apenas em família. O cerco se fecha rápido.
Walter Fane sempre estivera em seu entorno, como uma das bactérias que estuda, parasitando um corpo inerte, doido para apoderar-se dele. O biólogo, um homem pragmático, mas dado a paixões, sonha com a possibilidade de se envolver com Kitty, mesmo que ela nunca lhe tenha dado quaisquer ilusões a esse respeito. Edward Norton imprime ao seu doutor Fane toda a austeridade que o papel lhe exige, deixando uma margem segura para voltar em caso de um amolentamento espiritual, o que acaba ocorrendo, felizmente, de maneira completamente orgânica, um dos milagres de que só o amor é capaz, assunto de que trata o filme, em resumo. Não tarda para que o espectador compreenda que são ambos vítimas das convenções sociais: por motivos semelhantes — não obstante Fane se suponha apaixonado por Kitty —, devem se submeter ao matrimônio, que se impõe com força cada vez maior. O microbacteriologista pede a mão da personagem de Watts do jeito mais atabalhoado, quase lhe dirigindo uma ordem, por dispor de apenas dois dias antes de retornar a Xangai, onde desenvolve pesquisas contra as muitas doenças epidemiológicas que assolam o interior da China, sobretudo o cólera. Temendo a ofensiva da mãe, que já principiava a contaminar os ânimos dos outros membros do clã — em especial o do marido, pai de Kitty, que sustentava a todos —, é que, de uma forma nada romântica, nem mesmo comovente, terminam no altar.
Curran, também por trás do sucesso de “Tentação” (2004), igualmente estrelado por Naomi Watts, dá grandeza pictórica ao trabalho de Somerset Maugham exatamente por não pular uma linha do que escreveu o romancista. A carga filosófica de “O Despertar de Uma Paixão” é pesada. Questionando a necessidade do casamento, mesmo num contexto histórico em que não se pensava que se pudesse ser plenamente feliz de outro modo, o roteiro de Ron Nyswaner deixa no ar a constatação de que duas almas infelizes sozinhas não se tornarão menos melancólicas porque casadas; o matrimônio pode, sim, subverter a ordem de uma vida que se imaginava sem as tantas reviravoltas de que teria necessidade, mas não pela força do sacramento em si. A loteria da vida a dois torna-se ainda mais perigosa para Kitty e Fane: nunca tiveram nada em comum — e o aspecto psicopatológico dele cresce nessa hora, se podendo conjecturar uma possível obsessão de Fane pela agora esposa — e passam, numa relance, a contar somente um com o outro. Numa China ainda mais enigmática quase cem anos atrás, a trilha de Alexandre Desplat frisa as solidões dos protagonistas por meio de notas secas de piano: é quando vêm à tona suas lembranças sob a forma de imagens algo borradas, os fantasmas da vida que deixaram somam-se a novos espectros e percepções antes sugeridas se avultam no cotidiano, cenário que Curran, como Somerset Maugham, agrava com a alusão explícita ao meio hostil em que os personagens têm de viver, um lugar esquecido e miserável, em que uma moléstia altamente contagiosa para a qual não há contra-ataque sabido não poupa ninguém.
Como não há nada tão ruim que não possa ficar pior, Kitty, entediada e às raias de cometer uma loucura, conhece Charlie Townsend, o diplomata sedutor — e igualmente comprometido — interpretado por Liev Schreiber. Outra vez presa de ilusões de que já tinha estofo emocional para se safar, a senhora Fane acaba se envolvendo com Townsend, relacionamento que acarreta consequências que se estendem até o desfecho. A dificuldade de Kitty em aceitar sua realidade chega a soar meio farsesca; mesmo casada, continua a se comportar como a garota voluntariosa que recebia todos os mimos do pai, em tudo atendida por ele. Watts deixa em sua personagem a marca da mulher leviana, inconsequente, talvez um laivo de psicopatia, ao manipular sem pejo dois marmanjos e fazer deles fantoches — e não se abone a culpa de um ou outro: Fane é um sujeito irresponsável, que sabia (ou deveria saber) que essa união estava mesmo fadada ao malogro, e Townsend, um mulherengo irrefreável, que não mede esforços quando se propõe uma nova conquista, ainda que para isso largue um rastro de degradação. Contudo, dos três, é em Kitty que a pulsão de morte se manifesta com vigor incontrolável. A versão de Naomi Watts para o tipo a que a diva Greta Garbo (1905-1990) interpretara, em 1934, aos 29 anos, na primeira abordagem cinematográfica de “O Despertar de Uma Paixão”, dirigida por Richard Boleslawski (1889-1937) — houve uma segunda, em 1957, “O Sétimo Pecado”, de Ronald Neame (1911-2010), tão pálida e tão pouco relevante que nem merece uma análise mais elaborada, quiçá justamente por querer edulcorar o que só fazia sentido se amargo — consegue ser ainda mais impetuosa, insondável, personalidade revestida de uma firmeza diabólica, perdendo-se com gosto em seus tantos descaminhos.
A acrimônia daquelas existências, de Kitty, Fane e, em menor proporção, de Townsend, cujo orgulho viril nem o deixa perceber algo evidente na última sequência do longa, parece se arrastar pela eternidade afora, com diferenças pontuais. Só a Kitty foi concedida uma chance de mudança, que ela agarra com a energia que ainda lhe resta, dispensando uma reaproximação com o diplomata, uma vez que Fane saíra de sua vida para sempre. O único detalhe para que “O Despertar de Uma Paixão” se convertesse mesmo no filme definitivo sobre romances fracassados que em alguma medida se prestam ao renascimento de um espírito subjugado ao mal em suas nuanças mais sutis era a protagonista ter deixado o véu colorido que toda a vida usara e passasse a ostentar aquele outro, o branco, num casamento mais feliz que o da freira de Diana Rigg (1938-2020).
Filme: O Despertar de Uma Paixão
Direção: John Curran
Ano: 2007
Gênero: Romance/Drama
Nota: 10/10
