Boas ideias surgem fora das salas de aula ou seminários acadêmicos — hoje os santuários do bem pensar. Onde brota o pensamento mesmo, com nome digno de ser dito assim, é em diálogos sem fim determinado. E ninguém como os boêmios para a arte de jogar conversa fora. A literatura e a filosofia estão repletas de autores e personagens que passam o tempo sem fazer nada, apenas batendo papo. Mas é nesse papo despretensioso que aparecem coisas consideradas perigosas, sejam estéticas ou políticas.
Um bom exemplo brasileiro é o romance “O Amanuense Belmiro” (1937), de Cyro dos Anjos. Os personagens estão no bar do Parque e dão a lição a respeito da conversa infinita que diz tudo. As pessoas comuns circulam pelo local, e eles soltam o verbo: “Ali pelo oitavo chope, chegamos à conclusão de que todos os problemas eram insolúveis”. Já perto da nova rodada, vem a sentença: “a solução é a conduta católica”. Mais adiante, Silviano se arrisca na decifração do “problema fáustico” e até do Zaratustra.
Belmiro, Redelvim, Silviano, Glicério e Florêncio estão na modernista Belo Horizonte, onde se misturam as ideias do Brasil em transformação, os movimentos do mundo e as velharias francesas. Tudo ao sabor de vários copos de chope. Uma pitada de Anatole France para temperar a rebeldia de Rimbaud. Quando eles pegam o bonde de volta para casa, já mais para lá do que para cá, bem poderiam dar de cara com o personagem do poema “Aurora” (1934), de Carlos Drummond de Andrade.
O poeta ia bêbedo no bonde.
O dia nascia atrás dos quintais.
As pensões alegres dormiam tristíssimas.
As casas também eram bêbedas.
Tudo era irreparável.
Ninguém sabia que o mundo ia acabar
(apenas uma criança percebeu e ficou calada),
que o mundo ia acabar às 7 e 45.
Últimos pensamentos, últimos telegramas!
José, que colocava pronomes,
Helena, que amava os homens,
Sebastião, que se arruinava,
Artur, que não dizia nada,
embarcam para a eternidade.
Em 2023, foi reeditado uma das obras-primas que retratam uma época e trazem o elogio aos boêmios. O romance “Os Novos” (1971), Luiz Vilela, tem o cenário do boteco. Os personagens Zé e Nei conversam sobre angústias e frustrações. O tempo é o Brasil pós-golpe de 1964. “Lá fora estava meio frio, por causa da chuva, mas dentro do bar estava bom. Era um dia de semana, e havia pouca gente. O garçom veio: pôs a garrafa na mesa e abriu-a. Depois foi até a porta e ficou olhando a chuva.”
Conspirador subalterno
Os tempos da ditadura viram os boêmios se tornarem a “esquerda festiva” do Rio de Janeiro, descrita no romance “Bar Don Juan” (1971), de Antônio Callado. Os personagens mergulham em conversas de bar sem fim para ver o que poderia ser feito contra o governo. Um plano para ir à Bolívia, se juntar a Che Guevara e espalhar a revolução no Brasil. O dilema é representativo da época: aderir ou não à luta armada, vista como a saída última para enfrentar os militares. As ideias surgem entre goles e o papo no botequim.
O papo solto, sem organização, leva ao pensamento inesperado. Não por acaso é que sempre se temeu e se condenou a boemia. É nesses momentos que a cabeça pode se afastar das coisas concretas da vida para especular. Imagina-se outro mundo. Quem deseja a conservação de “tudo como está” só pode mesmo sentenciar, em termos jocosos, que essa gente cultiva a “filosofia de botequim”. Melhor pensar assim, acham os conservadores, desconsiderando as falas de personagens de Cyro dos Anjos, Vilela e Callado.
A boemia é um perigo para o mundo moderno. Um bando de gente que fica desocupada, sem trabalho, sem disciplina. Só pode resultar em bobagem. Segundo Walter Benjamin, Marx foi um dos primeiros a notar as classes perigosas dos boêmios na Paris do século 19. Também Baudelaire teria percebido, segundo o filósofo alemão, as pessoas sem ocupação e que ficam bebendo na capital francesa. A bebida não é o problema, mas sim a arte de conversar e ficar pensando coisas novas e diferentes.
“Marx fala das tavernas onde o conspirador subalterno se sentia em casa. Os vapores que aí se precipitavam eram também familiares da Baudelaire. Em meio a eles se desenvolveu o grande poema intitulado ‘O vinho dos trapeiros’. Sua origem pode ser datada em meados do século [19]. Naquela época, temas que ressoam nesses versos eram debatidos publicamente. Certa vez, tratou-se do imposto do vinho”, diz Walter Benjamin, no seu clássico texto “Paris do Segundo Império”.
Os conspiradores subalternos haviam sido importantes na Revolução Francesa de 1789. O historiador Robert Darnton revelou essas figuras que viveram à sombra dos grandes filósofos (Voltaire, Diderot e Rousseau). Eram escritores de um submundo, produtores de panfletos e sátiras. A escrita deles, suja e subversiva, ajudou a desmontar a imagem sagrada dos reis e nobres. E mais importante: uma subversão que as pessoas comuns poderiam entender, incluindo os trapeiros (catadores de lixo).
“O mundo dos subliteratos não tinha princípios; tampouco alguma instituição do tipo formal. Era um universo de gente à deriva — nada de cavalheirescos discípulos de Locke resignados às regras de algum jogo implícito, mas brutos partidários de Hobbes colhidos em meio à briga pela sobrevivência. Isso não ficava a menor distância de le monde que o café do salón”, diz Darnton, no belíssimo livro “Boemia Literária e Revolução — O Submundo das Letras no Antigo Regime”.
O “salón” era o espaço para uma classe de letrados discutir o futuro do mundo, no caso o continente europeu. Nesses cafés ou bares, surgiu a “esfera pública” para fundar a política democrática e contemporânea. O ambiente onde uma pessoa não cobra o tempo da outra e nem busca utilidade para a conversa com um interlocutor. Daí nascem os pensamentos. Jamais devemos menosprezar um papo descompromissado num boteco, sem horas para acabar, a não ser quando chega a hora de os garçons irem para casa.