Kleber Mendonça Filho é uma espécie de retorno do cinema brasileiro. Não me levem à mal, mas durante muito tempo, as coisas ficaram sombrias por aqui. Era difícil ver outro produto nacional que não fossem comédias de mau gosto dos atores da maior emissora do país. Uma ou outra coisa interessante pipocava aqui e ali, mas não conseguia espaços de exibição que não fossem extremamente segmentados, exclusivos e pouco conhecidos, como cinemas cults e festivais. Kléber Mendonça também chegou assim, tão underground, intelectual e artístico que demorou para alcançar o público geral. Foi em “Som ao Redor” que ele pareceu rasgar a redoma. E que alívio foi ver alguém realmente bom fazer isso!
“Retratos Fantasmas”, documentário do cineasta lançado neste ano relembra praticamente tudo de sua cinematografia. Na verdade, é quase uma antologia de vida. É como se Mendonça abrisse seu baú de memórias e revirasse muita coisa para o público. Nos primeiros 20 minutos, ele revisita um rico acervo de filmagens e fotografias de sua casa, um apartamento comprado pela mãe, depois do divórcio de seu pai, nos anos 1990. O lugar funcionou como set de gravação para quase todos os seus filmes. Dona Joselice Jucá, historiadora especialista em Joaquim Nabuco e André Rebouças, é lembrada com orgulho e admiração pelo filho cineasta, que revela as mudanças provocadas pelo tempo em sua casa e vizinhança, enquanto pinta um retrato da mulher culta e independente que o criou.
Depois desta espécie de prólogo, ele sai de sua zona de (des)conforto e parte para o centro de Recife, cidade onde nasceu e cresceu. Com um pequeno mapa emotivo pintado à mão, ele apresenta aos espectadores lugares tradicionais da capital pernambucana que, assim como outros edifícios de centros decadentes de grandes cidades do país, parecem fantasmas a assombrar um parque abandonado. Os centros respiram e inspiram, mas estão presos no passado, junto com os moradores mais tradicionais. A juventude não pisa lá. A classe média também não.
Mas Mendonça quer se aprofundar mesmo é na história das salas de cinema que ele frequentou durante a infância e juventude, que forjaram seu amor pela sétima arte e que hoje não passam de retratos fantasmas. Salas de exibição que funcionaram durante décadas, como o Art Palácio com projeções do falecido seu Alexandre, foram assassinadas com requintes de crueldade e transformadas em igrejas evangélicas. O centro de Recife perdeu seus letreiros luminosos, os pôsteres dos filmes em cartaz, além de seu vigor e seu brio.
“Retratos Fantasmas” é pessoal demais para ser racional e viaja em fantasias e superstições, memórias ternas, melancólicas e nostálgicas da capital pernambucana, na qual Mendonça teve a sensibilidade de documentar através de inúmeras imagens ao longo de tantos anos. Tal como Nova York para Woody Allen, Recife se consagra a musa do maior realizador brasileiro da atualidade, mostrando a indissociável simbiose entre a cidade e sua arte.
Apesar de ser tudo sobre Recife aqui, Mendonça fala universalmente quando reflete sobre as transformações dos espaços físicos, seja por meio da modernidade, da intervenção humana, do abandono, da natureza. A política, principalmente, interfere no planejamento da cidade. Tudo está em constante mutação e nada permanece intacto. O tempo é fulminante. E o nó na garganta também.
Filme: Retratos Fantasmas
Direção: Kléber Mendonça Filho
Ano: 2023
Gênero: Documentário
Nota: 10