Lusco-Fusco e a arte luminosa de Assucena Natalia Mitie / Divulgação

 Lusco-Fusco e a arte luminosa de Assucena

Naquele instante em que já não é mais dia nem é noite ainda, como na primeira horinha da manhã em que o sol inda não deu as caras mas um raio apressado entrega o dia que chega, nesse momento há um intervalo luminoso, uma luz que banha o mundo e a ela alguém deu o nome lusco-fusco. No anoitecer e no amanhecer, é como a mudança se anuncia irreprimível, absoluta e peremptória. No lusco-fusco.

E eu penso aqui comigo que não haveria nome mais bonito nem mais perfeito para o primeiro disco solo da cantora e compositora Assucena! Um interlúdio entre um capítulo e outro da história, um rito de passagem, uma divisão reluzente entre dois tempos.

Assucena
Capa do álbum Lusco-Fusco, de Assucena

“Lusco-Fusco” foi produzido por Pupillo e Rafael Acerbi, companheiro de Assucena em “As Baías”, a banda que a fez conhecida por todos os cantos. A direção artística é da própria Assucena e da também cantora e compositora Céu. Bravíssimos! Que trabalho lindo, Meu Deus!

Em dez canções, o álbum tem bolero, samba, soul, afoxé, música popular brasileira, canções de amor ao piano. Está tudo ali, embalado em papel manteiga, enlaçado em poesia para presentear as almas carecidas de beleza deste mundo e do outro.

Verdade é que a riqueza de ritmos e estilos de “Lusco-Fusco” escancara o talento de Assucena e de músicos como o pianista Rafael Montorfano, esbanjando ternuras nas faixas “Quase da cor dos seus olhos” e “Reluzente”. O multi-instrumentista Pretinho da Serrinha está ali também, abrindo o álbum com uma festa de três minutos e quarenta e dois segundos chamada “Menino pele cor de jambo”.

Escutando Assucena, é difícil não pensar em toda sorte de apertos, estorvos e aborrecimentos que sobre ela recaíram em sua trajetória até aqui. E ela transformou tudo em lindezas. Em arte generosa.

Em vida potente, pujante e impetuosa.

De meu canto do mundo, eu rezo por ela e acho que bem cabe às pessoas inteligentes e sensíveis deste país uma tarefa: defender e celebrar o direito de Assucena ser quem ela é. E ela é hoje uma das maiores cantoras do Brasil!

Nordestina e transsexual, uma artista em estado de força e graça derramando belezas sobre nós.

Celebrar a vida e a arte de Assucena como uma boa notícia, em tempos de tanto preconceito e tamanha violência, é um exercício generoso de amor à vida, à liberdade e à esperança de que estamos caminhando rumo a um tempo bem mais bonito do que este.

É a música, essa força imensa e linda, que não tem fronteiras nem de raça, nem de sexo, nem de nada, fazendo das suas de novo.

A mim só me resta agradecer pelo presente que é ouvir essa artista imensa. Assucena tem um ímpeto de embelezar a vida e um impulso irresistível que me inspira e me comove. Daqui a muitos anos, quando seus críticos e agressores já tiverem desaparecido, ela seguirá voando sobre nós, derramando amores e formosuras em toda a gente aqui embaixo, melhorando a vida. Viva e forte. Bela e eterna.

André J. Gomes

É professor e publicitário.