A boa ficção se preocupa em apenas expor situações e personagens, sem a necessidade de apresentar provas. Quem documenta e busca comprovações são os cientistas e os jornalistas. Ao fazer a exposição da realidade, o artista chega antes dos outros (a ciência, sobretudo) a uma verdade. No Brasil, o escritor Bernardo Carvalho é um dos mestres do jogo ficcional que se aproxima e se afasta do “real”. Ele desconfia do chamado realismo e luta contra a ideia de escrita como registro. “A verdade está perdida entre todas as contradições e os disparates”, escreveu ele no romance “Nove Noites” (2002).
Não é por acaso que se deve mencionar o livro de 21 anos atrás para falar sobre a mais recente obra do autor, o romance “Os Substitutos” (2023). De novo, Carvalho retorna ao espaço da Amazônia brasileira e mistura uma série de gêneros (narrativas de viagem, memórias, descrição factual, ficção científica) para expor sua história. Porém tudo está a serviço da ficção, a forma de escrever que provoca a imaginação e joga com as possibilidades da vida. Mais do que narrar, está em cena a profunda reflexão sobre as coisas do mundo.
O autor sempre demonstrou um pavor de que seus livros fossem associados a “narrativas da nação”. Trata-se de uma aversão à ideia de escrita documental — uma das marcas de nascença da literatura brasileira. Mas nunca o “real” o abandonou, estando ele sempre consciente da tarefa de esconder a realidade mais funda em seus romances. Que o leitor a desvende. O melhor exemplo é “Os Bêbados e os Sonâmbulos” (1996), no qual se revela uma história da ditadura brasileira, em meio ao mais sofisticado “risco do bordado” da escrita.
“Os Substitutos” não foge ao padrão da ficção altamente elaborada de Bernardo Carvalho. O que chama a atenção no novo romance é a presença mais marcante da realidade, algo que se via bem no livro anterior, “O Último Gozo do Mundo” (2021). Este romance ou fábula (como o autor o batizou) incorporou à ficção a urgência da pandemia global e a do país. Os dois livros tratam profundamente da ideia de “fim de mundo”, dos mitos da masculinidade e da crise do antropoceno (uma das questões mais centrais da atualidade ou do “real” humano).
O narrador de “Os Substitutos” conta uma história simples: a viagem de um menino de 10 anos com o pai num pequeno avião pela Amazônia. Eles vão visitar uma fazenda. O tempo da narrativa é a virada dos anos 1960 para os 1970, quando a ditadura militar colocou em prática o projeto de “começo do fim do mundo” para a floresta amazônica. Por óbvio, Bernardo Carvalho não entrega um relato direto e com descrições exaustivas. A todo instante, o narrador inicia frases com “do que ele se lembra”, para se referir ao menino. Nada pode ser afirmativo, tudo desliza.
Mas o olhar do menino é implacável. Vê tudo e um pouco mais. Ele decifra e recodifica para o leitor. O pai é o retrato mito da masculinidade, o do desbravador da Amazônia em seu tempo, porém repleto de fragilidades e afetos deteriorados. O ser-homem cheira a destruição social e pessoal. Ao mesmo tempo, o garoto lê e conta ao pai a história de um livro que está lendo. Nele, surge o relato de um grupo de pessoas enviadas para outro planeta, a fim de refundar a humanidade no futuro. É uma ficção científica e distópica sobre o que será a vida “depois do fim do mundo” na Terra.
Ocorre uma mistura das histórias da viagem do menino pela Amazônia com o livro da jornada intergaláctica. Ao chegar a outro planeta, os humanos passam por um processo de esquecimento do passado. Não seria forçar a barra dizer que hoje se estimula a amnésia como forma de ver o mundo. Melhor esquecer do que remoer, diz a lição da sabedoria banal e vendável. São tantos traumas, situações violentas, que o esquecimento se torna um remédio (ou veneno) para os seres humanos. E nada mais traumático do que a vida dos indígenas na floresta brasileira.
Como em todos os livros de Bernardo Carvalho, é ser muito estraga-prazeres contar os detalhes de passagens da narrativa. É sempre uma ficção feita com a lógica de enxadrista e a riqueza única de um fazedor de bordados. Jamais um ChatGPT poderia escrever “Os Substitutos”. A relação pai-filho se mostra em todas as suas “contradições” e os seus “disparates”, como alertava o narrador de “Nove noite”. Ao final, o menino já adulto sofre com os traumas da convivência com o pai e a vida amorosa com um ator de teatro — a homoafetividade sempre presente nos livros de Carvalho.
Em diversos trechos de “Os Substitutos”, aparecem frases curtas cheias de significado, praticamente aforismos: “A vingança é uma ilusão suicida” ou “A coragem é o medo imposto aos outros”. O fechamento do livro traz o narrador num show da cantora inglesa PJ Harvey, cantando e se desfazendo ao som da canção “A place called home”. Esta música poderia estar na epígrafe do livro, mas o autor a colocou no final. Fica a certeza de que a melhor ficção apenas expõe o “real” e deixa o pensamento para o leitor.