O terror proporciona uma infinidade de modos de se pensar o mundo, os costumes, a vida, e… rejeitar o mundo, os costumes, a vida — pelo menos a vida como a entendemos sob muitos aspectos desde tenra idade. Manifestações sobrenaturais talvez sejam os únicos fenômenos que o homem não consegue dominar de todo, decerto por causa de sua incômoda proximidade com a alma humana, ou melhor, com o mais torpe, o mais reles, o mais repulsivo da alma humana. O mundo, um lugar cuja hostilidade persegue-nos sem descanso, cada vez mais, aonde quer que se esteja, fica ainda mais perigoso depois de certas experiências, de certos passeios pelo que quase nunca se revela, e Paco Plaza entende isso como poucos. “Irmã Morte”, a prequela de “Verónica” (2017), um dos filmes mais fabulosamente estranhos do cinema do nosso tempo, mira uma porção de chavões e os derruba um por um, sem perder de vista a mensagem central, escondida sob vários metros de tecido. Plaza trata assuntos sérios como fé, vocação, celibato, clausura, epifania, conversão e os pecados da carne com a seriedade necessária, e, o mais importante, dispensando-se de tomar partido seja lá do que for. Ele é um mero observador do caos que engendra.
Imagens antigas em oito milímetros exibem uma garota sorrindo, como se respondesse ao toque da graça divina. O texto de Plaza e Jorge Guerricaechevarría, um nome também recorrente na indústria cinematográfica ibera, volta a um episódio místicopassado no fim da década de 1930 para situar a trama, o que não deixa de imprimir senso de realidade ao que é contado. Em 1939, na iminência do desfecho da Guerra Civil Espanhola iniciada três anos antes, Narcisa, filha de camponeses simples, passa a ser procurada por romeiros de todo o país por supostamente ter testemunhado a aparição da Virgem Maria, fenômeno observado há 22 anos, entre 13 de maio e 13 de outubro de 1917, na Cova da Iria, em Fátima, no vizinho Portugal. Da mesma forma como se deu com Lúcia, Francisco e Jacinta, “A Menina Santa” ganha as manchetes e reservam-lhe um tratamento de infundada veneração, até que a cena avança dez anos e Narcisa está num antigo convento, transformado pela diocese após a guerra em escola para meninas de famílias carentes. Despertando o amor da madre superiora, vivida por Luísa Merelas, e uma desconfiança que não tarda em redundar em ódio por parte da irmã Julia, de Maru Valdivielso, Narcisa dá razão a uma e outra, tentando se adaptar, embora convicta de seu pendor para a vida religiosa, a este novo ambiente, onde também encontra as contradições do mundo secular.
Aria Bedmar dota Narcisa da pletora de sentimentos incongruentes que definem a personagem. Ao passo que é vista como a derradeira esperança para o resgate do interesse das noviças pela atividade pastoral, as freiras mais velhas sabem que a garota tem suas vulnerabilidades, o que, em certa medida, teria o poder de explicar a crise de identidade de que padece no fim do segundo ato, vigorosa o bastante para fazer dela o canal para revelações do outro mundo que, vai ficando mais e mais evidente, nada têm de celestiais. Do véu de morte que estrangula as irmãs só Narcisa se liberta; malgrado privada da visão, sobra-lhe a luz que Plaza já aproveitara em “Verónica”.
Filme: Irmã Morte
Direção: Paco Plaza
Ano: 2023
Gêneros: Terror/Mistério
Nota: 9/10