O filme brutal e impactante que causou bate-boca nas salas de cinema Divulgação / Focus Features

O filme brutal e impactante que causou bate-boca nas salas de cinema

O comportamento masculino nunca foi modelo em vários aspectos, e é a partir daí que o enredo de “Bela Vingança” principia a ganhar corpo. Filmes como esse podem ser particularmente temerários numa época em que expressões como “masculinidade tóxica” e “sororidade” deixaram de ser tabu, incutiram uma saudável curiosidade no espírito das massas e pularam das rodas de conversa direto para as páginas dos jornais e os debates na televisão, um tempo em que mulheres reivindicam — e conseguem — os mesmos direitos que os homens. Há um laivo de feminismo militante, artificioso, delinquente até, no que a diretora Emerald Fennell expõe, mas, a algum custo, a história se ajusta a uma espécie de padrão, em que a mocinha, uma jovem mulher absorta no caminho de autodescobertas que saem do plano do razoável num episódio com a marca de agressões de muitos feitios, inauguradas pelo sexo, padece suas agruras, lamenta-se, pranteia sua dor, mas recupera o domínio sobre a própria vida de um jeito muito característico, escolhendo com todo o cuidado do que quer se lembrar e o que não pode esquecer ao longo da jornada, feita dos muitos pedaços nada felizes onde já não há mais espaço para se varrer o que quer que seja para debaixo do tapete da memória.

Na primeira sequência, a câmera se fixa na linha da cintura de homens dançando numa festa. Trata-se de um evento corporativo, em que mulheres são a ínfima minoria, mas fazem questão de se fazerem presentes, já que não existe nenhuma regra que preveja o contrário, a exemplo do que acontece nos clubes de golfe. Surge, como por encanto, uma mulher embriagada num sofá vermelho. Cassandra torna-se alvo da luxúria de um círculo de homens cujo teor ofensivo, à primeira vista, se atém ao linguajar chulo e às opiniões repugnantes sobre mulheres que viram a noite esvaziando garrafas e terminam naquele estado — condição degradante para qualquer um, a despeito do gênero. Meio coagido pelos outros dois, Jerry, o falso bom moço de Adam Brody, se dirige até ela, que supõe ter perdido o telefone, e se oferece para levá-la em casa, uma vez que ele também está de saída, diz. Ninguém tem a menor dúvida quanto ao que vai acontecer pouco depois que eles saltarem do carro de aplicativo, no qual se ouve uma música das Spice Girls — a saborosa trilha de Anthony Willis inclui também, no meio do segundo ato, próximo ao conflito mais devastador do roteiro de Fennell, uma versão de “Toxic”, de Britney Spears, num violino que se distorce um tanto. O que se passa no apartamento de Jerry serve de ponte a esse momento da trama, ao qual Ryan, o outro canalha limpinho, de Bo Burnham, paga seu tributo, vítima de uma chantagem inescapável maquinada pela protagonista.

Carey Mulligan oferece uma grata surpresa como a ex-estudante de medicina obrigada a abandonar o curso após a violação de Nina, a amiga que nunca aparece, mas em torno da qual a narrativa está sempre girando, em especial nos desdobramentos da despedida de solteiro numa cabana sabe-se lá onde, a que ela comparece, sem convite e fantasiada de Arlequina. O bárbaro em “Bela Vingança” assusta, porém a engenhosa conclusão, com direito a mensagens do além para o telefone de Ryan, descrimina Cassie. Patifes, tremei!


Filme: Bela Vingança
Direção: Emerald Fennell
Ano: 2020
Gêneros: Thriller/Crime
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.