As Crônicas de Gelo e Fogo são literatura menor e a série Guerra dos Tronos é diversão descartável

As Crônicas de Gelo e Fogo são literatura menor e a série Guerra dos Tronos é diversão descartável

Circulam na internet duas frases particularmente significativas sobre a série “Guerra dos Tronos”. A primeira, geralmente acompanhada da imagem de um nerd descolado se sentido o máximo, é: “Não julgo mais uma pessoa por sua posição política, mas por sua opinião sobre ‘Guerra dos Tronos’”. A segunda, normalmente acompanhada de uma figura pálida e cabisbaixa, é: “Será que sou só eu que nunca assisti nenhum episódio de ‘Guerras dos Tronos’?”. Ambas são igualmente tolas, por motivos diferentes.

Quando alguém declara que não julga mais uma pessoa por sua posição política, mas por sua opinião sobre “Guerra dos Tronos”, está explicitamente afirmando: “Eu só te respeito se você tiver a mesma opinião que eu tenho sobre essa tal coisa que eu gosto de assistir comendo pipoca no sofá da minha casa, porque essa coisa é, tipo assim, muito legal”. Existe alguma palavra melhor para definir essa postura do que fanatismo?

A segunda frase é sociologicamente mais complexa. Por que uma pessoa precisa se mostrar preocupada por não acompanhar uma respectiva série de televisão, seja qual série for? Por nenhum motivo, claro. Porém, a sociedade contemporânea, movida pelos “homens-massa”, postulados em termos conceituais pelo mestre José Ortega y Gasset no clássico “A Rebelião das Massas”, cria a falsa noção de que é preciso gostar do que a galera gosta para estar por dentro, para participar das rodinhas de conversa, até para arrumar namorada, namorado ou mesmo sexo casual. Sem estar inserido no gosto médio, ou do que é considerado legal, bacana ou sofisticado pelo gosto médio, o indivíduo se sente segregado socialmente. Só lhe resta se perguntar “onde foi que errei?”, ou, no presente caso, se o pouco interesse dele por “Guerra dos Tronos” é o motivo da condenação, já que a tal série parece ser o atual agregador social dos machos e fêmeas alfa, dos nerds de ocasião, dos nerds virgens e até mesmo dos PIMBA (pseudointelectuais metidos a besta). Uma preocupação absolutamente superficial. Essa mesma angústia seria gerada por uma obra-prima clássica? Alguém se mostraria preocupado, ao se perguntar: “Será que sou só eu que nunca li nenhuma peça de Shakespeare?”. Certamente não. “Guerra dos Tronos” é melhor do que a menor das peças de Shakespeare? Certamente não.

A cultura pop possui o poder de fazer o homem comum sentir-se superior. No passado fazia quem imitava os passos de Michael Jackson sentir-se um grande dançarino diante do primo do interior que só dançava catira. Hoje, faz um leitor das “Crônicas de Gelo e Fogo” sentir-se um erudito diante das tietes dos vampiros da “Saga Crepúsculo”. Em sua embriaguez pop são incapazes de reconhecer que são apenas livros divertidos e nada mais. O mesmo fenômeno que aconteceu com “O Código Da Vinci”, do Dan “Umberto Eco bizarro” Brown. No artigo O mal de se sentir inteligente lendo Harry Potter e Guerra dos Tronos, publicado na Revista Bula, defendi a tese de que essas duas sagas literárias, a despeito de suas qualidades, estão atrapalhando o desenvolvimento de uma geração de leitores. A série da HBO multiplicou o problema. Transformou os fãs de George R. R. Martin em uma seita de fanáticos.

Para esse tipo de fã extremista não basta que seu objeto de adoração seja considerado bom: é preciso ser o melhor, e o melhor de todos os tempos. Estar acima do bem, do mal e da crítica especializada. Tal atitude acaba com o senso de humor. Nem mesmo uma piadinha é permitida. São incapazes de reconhecer, por exemplo, que o programa possui estrutura dramática de novela. “Novela é coisa de velhos; somos jovens ‘muderninhos’ ligados em sexo, violência e intrigas políticas”, pensam enquanto abrem mais uma embalagem de iogurte natural desnatado. Ficam impressionados com a nudez e a morte dos personagens importantes, como se isso fosse novidade. O citado Shakespeare já fazia isso há séculos. Mas nem precisa ir tão longe: será que nunca viram um filme de zumbi?

Os sacerdotes do culto ao profeta barbudo Martin não veem que, mesmo na escala pop de valores, “Guerra dos Tronos” está muito abaixo de outros produtos. Daqui a alguns anos por qual papel o ator Sean Bean será lembrado como Boromir de “O Senhor dos Anéis”, ou Eddard Stark, de “Guerra dos Tronos”? Khal Drogo, embora seja a melhor atuação do canastrão Jason Momoa, não foi uma escada para o ator chegar aos papéis de Conan e Aquaman? Os bonequinhos da capitã Phasma não vendem mais do que os da Brienne de Tarth?

Resta um consolo: vai durar pouco.

O quê? Como assim? Que absurdo! Então, estou insinuando que os fiéis e abnegados admiradores de “Guerra dos Tronos” vão esquecer seu objeto de culto? Que àqueles que hoje estão dispostos a brigar com meio mundo para defender sua série preferida, um dia não vão dar mais importância para esse evento televisivo que dá sentido às suas vidas? Que vai chegar o momento em que pouco vai importar quem se senta no Trono de Espadas? Que todos aqueles DVDs comprados a peso de ouro vão ficar acumulando poeira na estante? Que vão preferir rever a versão estendida de “O Senhor dos Anéis” ou a décima edição especial definitiva de “Star Wars”? Que o único Stark relevante será o Tony? É isso mesmo? Estou defendendo esse absurdo?!

Deixe-me pensar (meio segundo de suspense)… Sim.

Exatamente isso. A história é conhecida. Uma série estreia. Faz sucesso de crítica. Começa a chamar atenção do público. Torna-se fenômeno pop. Domina a internet. As críticas negativas são rechaçadas com violência. Duas opções se desenham: a série é esticada desnecessariamente ou a série termina na hora certa. A série acaba. O último episódio é muito comentado. O interesse pela série começa a esfriar. Os DVDs da série entram em promoção no bacião de refugos das Lojas Americanas. A série é lembrada de vez em quando. Outra série entra no lugar daquela. Começa tudo de novo.

Se lembram desse padrão, meninas e meninos? Se lembram de “Lost”? Se lembram de “Breaking Bad”?

Acha que estou subestimando o tamanho do seu amor por “Guerra dos Tronos”? Que você tem tanta certeza de sua paixão que está pensando em tatuar o mapa do planeta Westeros nas costas, ou melhor, na testa? Cuidado. Lembrem-se do arrependimento de quem tatuou símbolos de “Lost”. Depois do lamentável último episódio, esses infelizes viravam motivo de piada. Na verdade, mesmo para quem tatuou a cara fechada de Walter White, a despeito do final mais do que digno de “Breaking Bad”, hoje, passada a empolgação, não pareceu uma boa ideia. O olhar 43 do professor-químico-traficante carecão não é tão sexy quanto uma tribal, um unicórnio ou uma estrelinha bem localizada.

Crianças, aprendam: no orgiástico universo dos seriados só há um caso cientificamente registrado de fidelidade absoluta. Os trekkies, fãs do jurássico seriado “Star Trek”. Eles são os lobos e falcões do mundo pop. Um parceiro para toda vida. Coisa de outras gerações. Em tempos de internet banda larga, mil novidades por segundo, esse tipo de monogamia televisiva é quase impossível. Só resta um conselho: divirtam-se com a bola da vez, e só. Nada de fanatismo. Logo, logo, vem outra coisa no lugar. E escutem o titio: pensem duas vezes antes de tatuar “Guerra dos Tronos” em qualquer parte de seu corpo. Um dia você pode acordar, mais velho e mais maduro, e perceber que uma terceira frase que ronda a internet é que está certa: “‘O Rei do Gado’ é melhor do que ‘Guerra dos Tronos’”.

Ademir Luiz

É doutor em História e pós-doutor em poéticas visuais.