O filme “Retratos Fantasmas”, de Kleber Mendonça Filho, é um acontecimento. Chamá-lo de documentário pode ser pouco, em vista dos elementos variados que compõem a história. O diretor fez, de novo, um cinema que pensa e não apenas narra uma boa trama. A obra está nos serviços de streaming para venda e aluguel.
O olho de Mendonça vê o que passa despercebido das pessoas, e a escuta vai mais além para pegar coisas dispersas e perdidas no mundo moderno — que pode ser apenas uma casa, uma rua da cidade do Recife ou mesmo o país.
O novo filme (quarto longa-metragem da carreira do diretor) parte de coisas mínimas ao redor da vida caseira do próprio Kleber Mendonça. Um microcosmo de onde se pode observar e ouvir o que se passa no planeta inteiro. Tudo se liga a tudo. Já o ponto de chegada da obra é, nas cenas finais, o mundo contemporâneo e moderno.
O fio condutor criado pelo filme está no colapso de um país, de uma forma de encarar a realidade brasileira, tendo Recife como cenário geográfico e afetivo.
À primeira vista, “Retratos Fantasmas” pode ser entendido como uma mera homenagem aos velhos cinemas de rua do Recife. É esse lado da memória que sobressai, porém o filme envolve muito mais coisas. Kleber Mendonça fala do mundo.
Os fantasmas do título são a mãe do diretor, os latidos do cachorro na casa vizinha, o projetista do cinema que fechou, a imagem do escritor Ariana Suassuna entrando numa sala assistir a um filme e um motorista de Uber que diz ter o dom de ficar invisível.
O filme se divide em três partes, como se fossem capítulos de um romance ou de um livro de memórias. A primeira delas é um olhar sobre o apartamento do próprio diretor no bairro de Setúbal, no Recife.
Aquele espaço funciona como um arquivo de imagens e sons: o retrato do abolicionista André Rebouças na parede, as milhares de fitas de vídeo guardadas ali, as cenas de curta metragem de Kleber feitas no local. É ali, naquele prédio e naquela rua, que se filmou a obra-prima “O Som ao Redor”.
A segunda parte faz o deslocamento para o centro do Recife e suas velhas salas de cinema. O filme assume a tarefa de registrar as ruínas de uma cidade (prédios mofados, comércio esvaziado) e os cinemas que deram lugar a igrejas, lojas de eletrodomésticos, shopping centers.
O capitalismo transforma os espaços em fantasmagorias. Uma velha igreja do século 19 é demolida para a modernização por meio de um cinema que hoje virou uma ilha de cultura, de vontade civilizatória, no meio de escombros, de restos do que foi moderno 50 anos atrás.
A terceira parte é a construção da nova modernidade do século 21 e que um dia será também ruína. A cultura representada por cinemas e livrarias no passado recente dá lugar aos templos religiosos e às lojas de bugigangas e de eletrônicos.
Na sequência, ocorre a volta de Kleber do centro de cidade para sua casa (o apartamento da primeira parte) num taxi Uber. O motorista de aplicativo é o último ponto de contato da classe média e alta no Brasil com as pessoas de menor renda.
No Uber, a câmera de Kleber Mendonça coloca o olhar do espectador na janela do carro. Cria-se um filme dentro filme que mostra os novos espaços do Recife moderno, conectado às coisas do mundo.
Mas o que se vê nessa parte do filme são apenas drogarias, farmácias, uma atrás da outra, numa monotonia incômoda. O capitalismo brasileiro virou isso, pelos olhos e ouvidos do diretor: lojas para venda de remédios e igrejas. São as ruínas do futuro que já chegou.
“Retratos Fantasmas” mantém a linha provocativa dos três longas anteriores (“O Som ao Redor”, “Aquarius” e “Bacurau”. E mais importante: o filme tem uma qualidade técnica impecável e uma capacidade de ser entendido por qualquer pessoa.
Dos restos do Brasil, sobretudo a partir do que se viveu na última década, é possível narrar, contar histórias e pensar muito. Para dar conta dessa tarefa de decifrar o país, estão o olhar e a escuta de Kleber Mendonça Filho.