Veteranos em disputa dentro das quatro linhas. Alguém tinha conseguido o contato de um motorista de ambulância. Por segurança. Nunca se sabe. O jogo estava jogado, pegado, duro de assistir, a várzea em polvorosa, a fumaça do churrasquinho serpenteando no ar, os olhos da torcida pregados no campo. Nem tanto assim. Passou uma mulher bonita perto do alambrado e todos a fitaram enfeitiçados.
Nossa defesa passava por um sufoco danado, uma verdadeira blitz dos atacantes adversários. Bola pro mato, ainda que o jogo não fosse de campeonato. Escanteio para os caras. Um canhoto pegou a bola entre as mãos, deu nela um beijo e a chamou de meu benzinho, enquanto se dirigia para a bandeira do corner. Sempre um canhoto para atazanar a vida da gente.
O sujeito chuveirou a bola na área. Foi como se a colocasse ali com as mãos. Gelei o espinhaço. As pernas bambearam. A bola ribombou como num fliperama, espocou nas canelas, pererecou entre os zagueiros, beijou a cara da trave e acabou sobrando livre, leve e solta para mim na meia cancha. Valendo-me da frieza e da discrição de um urutau, usei a visão periférica já meio capenga e percebi que o goleiro — que mais parecia um monstrengo com dez tentáculos — estava adiantado, fora da grande área. Tive uma grande ideia: pensei vou pentear a bola e — pimba! — encobrir o desgraçado.
Além da própria natureza, ninguém se preocupara em me marcar dentro do campo. Então, armei o chute, abri o compasso e disparei um petardo jamais suposto de um faquir com ceroulas presas por esparadrapos. A bola viajou, viajou, viajou, descrevendo uma longa parábola no céu. Um quero-quero arreliento saiu do ninho e piou essa bola vai entrar, meu povo. Um pássaro com visão de jogo. O goleiro adversário percebeu o perigo iminente da redonda morrer no fundo da sua meta. Então, partiu em disparada, tropicando, catando coquinho, olhando para o alto e para trás, acompanhando com olhos apavorados a trajetória veloz e malévola da bola até que ela lambesse o barbante. Golaço.
Nunca na história das peladas desse país, eu fizera um gol tão emblemático. Perplexo com a própria façanha, caí de joelhos sobre o tapete de grama cuiabana e apontei os fura-bolos para cima, na direção do céu, como se lá levitasse a alma desencarnada do eterno Rei Pelé, o maior atleta de todos os tempos, desde que os gregos começaram os torneios de cuspe à distância em Olímpia. Por pouco, muito pouco, pouco mesmo, não espetei as córneas dos companheiros que acorreram para me abraçar, protagonizando um cínico e patético espetáculo de fé de um jogador ateu que, sequer, acreditava em gol espírita.
Fui festejado pelos colegas e ovacionado pelo público — cerca de meia dúzia de senhores grisalhos, barrigudos e bobagentos que tomavam cerveja e se arriscavam devorando espetinhos de um animal não identificado. Até mesmo os adversários reconheceram a proeza do belo gol de cobertura, afirmando que, com toda certeza, não se tratava de uma simples obra do acaso, um lance de rara sorte, uma reles cagada, mas, um gol pensado, concatenado, concebido em frações de segundo e executado com maestria, por quem conhecia do ofício, sob os auspícios de Deus, que amava futebol, e sob o adjutório providencial do vento norte que tinha parado de assoprar para assistir à bola morrendo no fundo das redes.
O jogo terminava ali, mas, a confraternização prosseguiu durante a resenha. A melhor parte das peladinhas são as potocas na mesa de um bar. Isso a gente mostra, mas, as mulheres não entendem. Um amigo despejou cerveja no meu copo e disse guardadas as devidas proporções você fez o gol que Pelé não fez na Copa do Mundo de 1970. Eu me recordava, sim, do lance espetacular do camisa 10 brasileiro. Todo mundo que curtia futebol conhecia o quase-gol de Pelé contra os tchecos no Estádio Jalisco, em Guadalajara, no México, quando a seleção brasileira aplicou uma tunda de 4 x 1 na Tchecoslováquia. A cena da bola chutada por Pelé se perdendo pela linha de fundo transformou-se num dos lances mais antológicos do esporte mundial.
Enquanto me divertia com as bajulações, com a conversa fiada e com o carinho dos amigos de bola, eu pensava na genialidade de Pelé, na rapidez de raciocínio dentro do campo, na explosão muscular em direção ao gol, na intimidade com a bola, nos dribles desconcertantes, na falta de misericórdia pelos adversários, na alegria esfuziante do homem preto, vitorioso, quando saltava e socava o ar com o punho direito na comemoração do gol.
Naquele dia, a bola chutada por Pelé, caprichosamente, não entrou. Nem precisava tanto. Todo mundo já sabia que ele seria eterno. Valendo-me dos chavões do futebol, quisera viver a vida com a mesma categoria com que Pelé jogava futebol: socando o ar todo santo dia, com a alegria nas pernas e com o coração no bico da chuteira.