Eu tenho o hábito, desaconselhado pelos otorrinolaringologistas, de ouvir música em fones de ouvido minúsculos, enfiados nos buracos das orelhas, em volumes inacreditáveis, como se eu pudesse silenciar o mundo lá fora. Como se possível fosse reduzir o tempo e o espaço ao movimento infinito de uma canção depois da outra.
Ouço música enquanto lavo a louça às quatro horas da manhã. Quando caminho e quando tomo banho. Escuto música para dormir e para acordar. Enquanto escrevo e enquanto leio, ouço música também.
Hoje, lendo as notícias de uma guerra estúpida, o ar me faltou no peito e uma playlist aleatória me deu um presente: do nada, ouvi uma moça tocando sanfona. E o mistério da música deu de novo o ar de sua graça.
A canção era “Apneia”, faixa-título do segundo álbum da cantora, compositora, socióloga e artista de circo Lívia Mattos.
Parei tudo para escutá-la. Ouvi seus versos, sua sanfona, sua música. E tudo isso junto produziu em mim um efeito de corticoide em crise asmática. Lívia apaziguou-me com a vida. Devolveu-me o ar.
Que lindeza é essa moça tocando sanfona e cantando bonito. Dizendo coisas que precisamos ouvir! Pensando alto o que devemos pensar!
Então eu penso comigo que seu disco devia estar nas receitas médicas e terapias alternativas, nos programas acadêmicos, nas dinâmicas de grupo de grandes empresas, nas escolas de educação infantil. Nas feiras livres e nos mercados de rua, nas novenas de São Benedito, nas celebrações de toda sorte. E nos encontros dos homens políticos que decidem as guerras. Quem sabe eles parassem tudo para escutá-la. Fosse o mundo mais justo e os governos mais humanos, povoados de gente inteligente e gentil, seria assim.
Verdade é que as treze faixas do álbum “Apneia” não vão salvar o mundo, mas o mundo não precisa mesmo ser salvo. Ele há de continuar aqui se as guerras e as doenças nos aniquilarem. Nós é que precisamos de ar. Enquanto aqui estivermos, você e eu carecemos arejar a cabeça e respirar.
A música de Lívia Mattos é um remédio carinhoso. Exala belezas, inspira ações, transpira força e graça por todos os poros. É um disco repleto de participações especiais e parcerias afetivas — de Ceumar a Marcos Suzano, de Ná Ozzetti a Odete de Pillar, de Alessandra Leão e Irene Tienza a Armandinho Macedo e tanta gente mais.
Tamanha aglutinação é um poderoso exercício de congraçamento e resistência. Lívia é uma aglutinadora de belezas, operando levezas enquanto empunha, segura e impecável, seu acordeom de treze quilos.
Escuto sua música e penso comigo que sua presença neste tempo e espaço é um recado bonito: por piores que estejam as coisas, há sempre uma possibilidade, um caminho, uma esperança. Quando nos faltar o ar, há de haver um fole a nos devolver o fôlego. E quando o horror parecer insuportável, haverá sempre uma beleza atrevida como um golpe de vento que bate a porta. Feito uma moça tocando sanfona e cantando bonito, soprando a vida de novo dentro de nós. Pronta para reinventar o mundo.