Vencedor do Goya, filme impactante na Netflix retrata como vivem crianças em meio ao conflito entre Israel e Palestina Divulgação / Underdog Films

Vencedor do Goya, filme impactante na Netflix retrata como vivem crianças em meio ao conflito entre Israel e Palestina

A Ásia Ocidental é palco de embates entre os povos judeu e palestino desde tempos imemoriais, com registros até nos livros do Velho Testamento, presentes na Bíblia cristã, na Torá judaica e no Alcorão muçulmano. Esses conflitos foram a pouco e pouco apresentando-se mais sangrentos e despertando a curiosidade da opinião pública mundial com mais força a partir de 14 de maio de 1948, quando da instituição oficial do Estado de Israel. Os enfrentamentos bélicos entre israelenses e árabes-palestinos no Oriente Médio, tema colateral de “Nascido em Gaza”, devem-se à posse do território que compreende o Estado de Israel, um estreito prolongamento de terra entre o deserto de Negev e o litoral, a faixa de Gaza, e uma parte da Cisjordânia, na margem ocidental do rio Jordão, com 6.220 km², mas não só. A uma apreciação leiga, parece que esta é uma briga de vizinhos já um tanto rancorosos um do outro, obstinada, de difícil solução, onde morrem uns tantos soldados israelenses, vários militantes terroristas do Hamas e, ocasionalmente, do Hezbollah e do Estado Islâmico — e, claro, muitos, muitíssimos civis de parte a parte — e a vida segue, afinal, eram quase todos mulheres e homens conscientes de que cedo ou tarde eclode uma guerra naquele pedaço do mundo tão cheio de idiossincrasias. A triste obviedade lembrada por Hernán Zin é que também morrem crianças nessas ofensivas — na de julho de 2014, quando da confecção do filme, Zin, um ex-correspondente de guerra ítalo-argentino radicado em Madri, contou 506 baixas de pessoas com idades entre zero e doze anos, além de 3.598 feridos com gravidade. O diretor escolheu cinco desses pequenos e bravos sobreviventes, cujo atribulado cotidiano é exibido em toda a sua melancólica crueza, para retratar a estupidez brutal (e assassina) do homem. São meninos e meninas impedidos de brincar, de estudar, de viver. São as vidas secas da Terra Santa, esperando o milagre que Deus, calado pelos homens, não lhes pode dar.

As ondas do mar batendo na praia dão a falsa impressão de placidez que consola um morador de Gaza em especial. Aos nove anos, Mohamed garante o sustento da família recolhendo material reciclável do lixo, e sua única diversão é olhar o Mediterrâneo ao longe, uma vez que a praia fora interditada e o tráfego de comerciantes, restringido. Na prática, isso significa um tempo de ainda mais adversidade para o garoto moreno, rechonchudo e esperto, que sabe muito bem o que acontece ao seu redor. “Temos uma guerra a cada dois anos, e não podemos mais suportar”, desabafa ele, numa voz resoluta e opressa, acrescentando lucidamente que qualquer um em Gaza teve um parente morto pela guerra — é justamente esse o caso deUdai, pouco mais novo, testemunha da morte do irmão mais velho. O diretor entrevista também Mahmud, que sonha tornar-se agrônomo, filho de um agricultor cujas terras foram bombardeadas e foi à falência depois que da criação de camelos e cordeiros não restou nada; Rajaf, cujo pai foi baleado — não se sabe se por guerrilheiros do Hamas ou por soldados israelenses — enquanto resgatava feridos numa ambulância improvisada; e Sondos, uma garotinha que convalesce do ataque que custou-lhe a perda de uma fração do aparelho digestivo. 

Os depoimentos, a fisionomia a um só tempo carregada e esperançosa e maturidade precoce de Mohamed são, no entanto, o eixo do filme. Com o epílogo daquela etapa da guerra, uma década atrás, ele podia fazer o que mais gostava, nadar nas águas revoltas de uma praia deserta, esperando que ninguém mais morresse por querer ter uma terra para chamar de sua, nos momentos de folga no porto, onde recebia trinta shekels por semana para carregar e descarregar caixas de pescado. Mas os adultos nunca se satisfazem com nada.


Filme: Nascido em Gaza
Direção: Hernán Zin
Ano: 2014
Gêneros: Documentário
Nota: 10/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.