Oriol Paulo, com uma percepção aguda e precisão cirúrgica, cimenta-se como um pilar do cinema espanhol contemporâneo, especialmente no gênero de thrillers psicológicos. Nos últimos anos, ele tem desenhado meticulosamente um caminho criativo, demonstrando versatilidade em escrita, direção e produção. Seu repertório, repleto de filmes enigmáticos e séries de televisão, conseguiu não só fascinar uma audiência global mas também atraiu olhares críticos que reconhecem o valor artístico em suas obras intrigantes. Títulos como “O Corpo”, “Durante a Tormenta”, “Um Contratempo” e a série “O Inocente” são marcos em sua carreira, porém, é em “As Linhas Tortas de Deus” que Paulo consolida seu virtuosismo. Inspirado pelo romance homônimo de Torcuato Luca de Tena, este projeto absorve a essência sombria da história, elevando-a com sua visão cinematográfica única.
O romance de Tena, uma obra que sacudiu seu tempo, nasceu da imersão do autor no ambiente assombroso de um hospital psiquiátrico em Santiago de Compostela, expondo abusos e iniquidades que, posteriormente, geraram debates fervorosos. Esta desoladora verdade não se restringia a um local, mas era um reflexo perturbador de uma problemática universal, como evidenciado em narrativas paralelas de diferentes países, entre eles o Brasil, com representações impactantes como o filme “Bicho de Sete Cabeças”.
Na releitura de Paulo, a premissa absorvente de Tena ganha novos contornos. A história nos introduz a Alice (Bárbara Lennie, em uma atuação que hipnotiza), uma detetive que, em um plano audacioso, finge uma doença mental para se infiltrar no hospital psiquiátrico, com o objetivo de desenterrar verdades ocultas por trás de um incidente enigmático. Seu comprometimento é tão autêntico que ela tece uma segunda identidade, ludibriando mesmo os mais calejados especialistas em sua busca por justiça.
Durante sua permanência involuntária, Alice, apresentada sob a fachada de uma química com um passado sombrio e violento, vê-se presa na armadilha que criou. A dualidade de seu papel começa a fragmentar-se, com ela lutando para preservar seu eu autêntico, uma batalha que a distancia ainda mais da liberdade, intensificando as suspeitas sobre sua condição mental e culminando em restrições ainda mais severas à sua existência dentro dos muros da instituição.
A angústia de Alice, presa em um limbo onde realidade e insanidade se entrelaçam, é retratada com fervor emocional. A trama se aprofunda conforme ela navega por alianças frágeis, tanto com membros do corpo clínico, representados por Cesar Arellano (Javier Beltrán) e Montserrat Castell (Loreto Mauleón), quanto com pacientes que guardam seus próprios segredos, como os irmãos Rômulo e Remo (Samuel Soler) e Urquieta (Pablo Derqui).
A saga de Alice, repleta de adversidades, transforma-se em um emaranhado emocional para o espectador, provocando uma montanha-russa de suspense e incerteza. A cada guinada, o filme manipula a realidade, insinuando que Alice, talvez, não seja a heroína lúcida que preconiza ser. As reviravoltas mostram evidências comprometedoras e segredos sobre o passado obscuro do cônjuge de Alice, desafiando as convicções do público sobre a protagonista. Sua argúcia e determinação, mesmo diante de sua complexa situação, provocam questionamentos e admiração.
A narrativa intrincada vai além, entrelaçando-se com elementos de “Alice no País das Maravilhas”, ampliando o surrealismo e a incerteza. Alice, em sua jornada, vacila entre momentos de paranoia e genialidade estratégica. O público, preso nesta odisséia psicológica, é cativado pelas atuações magistrais, especialmente de Lennie, cujo desempenho lhe garantiu um merecido Prêmio Goya.
Sob a batuta de Oriol Paulo, “As Linhas Tortas de Deus” celebra a complexidade narrativa reminiscente de autores como Arthur Conan Doyle, tecendo uma história que simultaneamente confunde e encanta. Paulo, mestre em borrar as linhas entre realidade e fantasia, coloca a própria realidade de Alice em xeque: ela seria uma prisioneira de suas ilusões ou uma vítima de forças obscuras que buscam silenciá-la? O desfecho, propositalmente ambíguo, deixa indagações ressoando na mente do espectador, uma experiência tão desestabilizadora quanto a vivida pelos personagens.
Filme: As Linhas Tortas de Deus
Direção: Oriol Paulo
Ano: 2022
Gênero: Thriller/Psicológico/Suspense
Nota: 10/10