Ah, essa minha cara de puta

Ah, essa minha cara de puta

Não. Eu não venho sempre aqui. É a minha primeira vez e penso que será a última. Acredite. Está equivocado. Você nunca me viu mais gorda. Sim. Tenho certeza. Numa boa. Guarde consigo essa clara impressão de que me conhece de algum lugar. Longe é um lugar que não existe. Não. Essa frase não é minha. É o título de um livro do Richard Bach. Não me leve a mal. Desculpe. Você não pode se sentar do meu lado. Sim. Estou esperando outra pessoa. Eu não devia responder essa pergunta, mas, vamos lá, ainda me restam gomos de paciência. Jesus. Estou esperando que Jesus Cristo retorne ao mundo essa noite para me fazer companhia no balcão desse pub. Juntos tomaremos um Bloody Mary preparado com o sangue do cordeiro. Não. Você não tem cara de palhaço. Se tivesse cara de palhaço, talvez, quem sabe, pudéssemos até ser bons amigos, ao menos por um dia. Não precisa me pagar bebida alguma. Tenho o meu próprio dinheiro. Você ainda não viu nada. Tem mais grosseria de onde saiu essa. Meu terapeuta diz que eu me encaixo como uma luva no perfil de sociopata. Sim, eu tenho problema. Aliás, morando nesse país, o que não me faltam são pessoas inconvenientes e problemas. Poderia passar a noite inteira enumerando-os para você, mas, simplesmente, não estou nem um pouco interessada em conversar com uma pessoa que não conheço. Nem que fosse com o próprio filho de Deus. Obrigada pelo elogio. Sou mau humorada, com toda certeza. E malina também. Posso subir agora mesmo e vestir algo mais confortável. Quem sabe, a mortalha da sua mãe. A pobre ainda vive? Que desgosto para ela. Não. Eu tenho certeza. Eu não vou me arrepender por isso. Pode parar de anotar o número do seu telefone nesse guardanapo. Limpe a sua boca com ele. Concordo plenamente com você. Eu sou estranha. Eu sou doida, não resta a menor dúvida. Uma maníaca que cede à sanha de homens desconhecidos para lhes decepar os falos, na calada da noite, enquanto cochilam depois de uma trepada. Tenho ótima audição. Não precisa gritar comigo. Sim. Eu faço, sim, ideia da pessoa com quem estou falando. Só não posso lhe dizer, assim, de supetão, sob pena de me passar por uma mulher mais rude e mais cruel do que fui até agora. Obrigada pelo reconhecimento. Estamos começando a nos entender. Sou uma megera, uma mulher vulgar, uma criatura infeliz e, acima de tudo, eu sou muito mal-amada. A probabilidade de me dar mal no futuro é enorme. O que não deixa de ser um prognóstico deveras alvissareiro. Nessa toada, vou acabar me tornando uma mulher amarga e solitária. Tipo esse Campari misturado com perdigotos que você está bebendo. Uma solidão consentida por dentro, on the rocks, só que sem a queimação e sem a azia. Demorou. Que bom que você já vai andando. A gente podia nunca mais se ver. Numa boa. Fico feliz que você tenha, finalmente, compreendido a minha situação particularmente periclitante. Por mim, tudo bem. Vou me foder, sim, pode deixar, desde que não seja consigo. Passe bem você também, estranho. Não. Deus não vai me pagar. Deus não existe; os terrivelmente idiotas, sim. Além do mais, como eu já disse, tenho o meu próprio dinheiro para bancar as bebedeiras. Aproveite a sua generosidade com as mulheres que dão mole por aí e pague o que deve ao pobre do barman. Ele não tem culpa de nada. Eu não bebo a sua bebida quente. Eu gosto mesmo é de cerveja. E de ouvir música alta. E de me vestir com as roupas que eu quiser. E de ficar sentada sozinha num bar, com essa minha cara de puta, sempre que me der vontade. Doce como a solitude. Amarga como a solidão.   

Eberth Vêncio

É escritor e médico.