Aclamado no Festival de Sundance, suspense eletrizante acaba de estrear na Netflix Sergej Radovic / Netflix

Aclamado no Festival de Sundance, suspense eletrizante acaba de estrear na Netflix

Mulheres levaram muito tempo para chegar aonde poderiam ter estado desde sempre, não fosse a sólida cultura, tornada uma verdadeira maldição em várias partes do mundo, que designa como atribuições femininas a manutenção da casa, o cuidado com os filhos e tudo quanto possa advir desse inesgotável universo, o que ao cabo de pouco tempo tem o condão de arruinar qualquer ilusão romântica, e, claro, se reflete nas possibilidades de volta ao ambiente corporativo. O combinado não sai caro, já diz a sábia e cavernosa voz das ruas, e se a mulher decide partir para a aventura doméstica de bom grado, que seja feliz.

No entanto, se o envolvimento amoroso se dá numa conjuntura em que está decolando, como Emily, a protagonista de “Jogo Justo” (2023), e se vê forçada a tornar ao solo, sob a tácita intimidação de quem deveria hipotecar-lhe todo o suporte, qualquer possível chance de felicidade se esboroa de vez no chão duro da vida como ela é. Na verdade, a mocinha do filme de Chloe Domont está em apuros um tanto mais nebulosos, uma vez que seu caso com Luke principia num campo minado, território nada inspirador, depois de passarem por cima de uma regra com a qual estavam de acordo, ainda que não pudessem vaticinar que eles mesmos seriam afetados em cheio e sem perdão.

Depois de uma estreia promissora no TIFF, o Festival Internacional de Cinema de Toronto, no Canadá, em 7 de setembro de 2023, e de uma passagem por Sundance, voltado a incentivar cineastas neófitos, o primeiro longa de Domont é o típico feijão com arroz bem feito e muito bem temperado, sem nada de mais e ao mesmo tempo apetitoso. Todo mundo sabe que o relacionamento de Emily e Luke, dos talentosos Phoebe Dynevor e Alden Ehrenreich, não vai longe.

A mágica em “Jogo Justo” é especular sobre quando vai se dar a virada, e em que intensidade, supondo-se, quase com absoluta certeza, o tal jogo será sim justo, mas para ela. O roteiro da diretoria mostra Emily, analista financeira de uma grande companhia sediada em Manhattan, fumando no terraço de um edifício, sozinha, enquanto no salão da cobertura uma festa se alonga madrugada adentro, sem hora para acabar. Não, felizmente a moça não está a ponto de se lançar prédio abaixo, muito menos depois que Luke, seu príncipe desencantado, a resgata de novo para o centro das atenções, inclusive do tio do rapaz, de Jim Sturgeon, que a elogia com um desembaraço meio constrangedor. Antes que o próprio Luke possa complementar a declaração do parente assanhadinho, a cena corta para os dois, Emily e Luke, a sós no banheiro, fazendo vocês sabem o que, da forma mais animalesca possível, e ali mesmo Emily é pedida em noivado.

A mudança de cenário, momento em os personagens de Dynevor e Ehrenreich começam a se digladiar por causa da súbita ascensão de Emily, responde por um sensível esfriamento da narrativa, mas quem se importa? A lógica em histórias como essa é justamente testar o limite do espectador, excitá-lo em todos os sentidos, até que o clímax supostamente proposto por Domont se abata sobre todos, Emily, Luke e quem assiste — “supostamente” porque ninguém duvida por um segundo que a intenção desde o princípio é desafiar o gosto do público, comprovar que nos interessamos muito pelo lado feroz dos outros, sobretudo se há sexo no meio.

A crônica das safadezas corporativas perde força, e “Jogo Justo” se firma mesmo é como uma sátira apimentada acerca das enfermidades afetivas, pequenas ou grandes, de casais, ricos ou pobres, bem-sucedidos ou não. Além de talentosos, Dynevor e Ehrenreich são lindos, sensuais, agridem-se na medida certa e, quem sabe, se amam. Como deixa evidente a postrema conversa dos dois, regada a sangue.


Filme: Jogo Justo
Direção: Chloe Domont
Ano: 2023
Gêneros: Drama/Mistério/Suspense/Erótico
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.