Aplaudido de pé, um dos filmes mais belos da história da Netflix fará você enxergar a vida com outros olhos Divulgação / Netflix

Aplaudido de pé, um dos filmes mais belos da história da Netflix fará você enxergar a vida com outros olhos

“O Fotógrafo de Mauthausen” é um dentre os tantos exemplos de filmes em que tipos capazes de desafiar o estabelecido, mais que necessários, são fundamentais para que a humanidade resista a si própria. Mártires são indivíduos de carne e osso, exasperantemente comuns, que passam por cima dos próprios medos e fazem o certo, o justo. Que vão muito além do que deles esperam os outros e avivam dentro em si a alma do revolucionário possível, malgrado tudo ao redor sucumba ao ódio, ao pânico, à loucura, à hediondez, a fim de dar alguma esperança, a si mesmo e aos demais, de que uma vida nova é possível para quem nela crê, para aqueles que por ela batalham, sem trégua, com a energia do soldado que avança pela frente inimiga no frio da calada da noite, alheio aos perigos do breu que desvia de toda luz. Heróis são e serão necessários sempre, e é nos momentos de crise mais opressiva que eles se fazem revelar.

Uma massa disforme de sete mil espanhóis maltrapilhos chega a Mauthausen, um dos mais de quarenta mil campos de concentração erguidos pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), vindos da luta contra Hitler com a França, da miséria, da fome, do revés na Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Esses homens eram prisioneiros políticos e não tinham mais uma terra para chamar de sua, uma vez que Ramón Serrano Suñer (1901-2003), ministro do ditador  Francisco Franco (1892-1975), revogara a nacionalidade deles. Os kapos, chefes de cada uma dessas seções do próprio inferno em vida, incorporam a autoridade que julgam ter e uma das iluminações do roteiro de Alfred Pérez Fargas e Roger Danès é sustentar que Mauthausen recebeu também triângulos verdes, como eram classificados os criminosos comuns. Francesc Boix (1920-1951), o ex-soldado que servira durante a Guerra Civil, tem a sorte de cair nas graças do obersturmbannführer Paul Ricken (1892-1964), o tenente-coronel da SS interpretado por Richard van Weyden. Por absurdo que pareça, os nazistas carecem de fotógrafos que registrem uma ínfima dimensão de sua maldade sem limites, e por algum motivo que o texto de Fargas e Danès abafa, Boix, de um Mario Casas preciso e comovente, é o responsável pela tarefa.

A partir do segundo ato, a história deriva para perspectivas até então abstratas do temperamento de Boix, como sua capacidade de liderança, imprescindível num lugar como aquele. Casas apreende seu personagem na forma do homem munificente, elevado que ele de fato era, mas lhe dá contornos mais e mais terrenos, profanos até, e, ainda assim, marcados pelo lirismo. Quando recebe como bônus fazer uma visita ao lupanar mantido pelos nazistas em Mauthausen, outra das excrescências perpetradas pela guerra, não consuma a relação com Dolores, a presa encerrada ali somente para esta finalidade, porque visões de um corpo em chamas invadem seu pensamento. Numa participação-relâmpago, Macarena Gómez responde por muito da atmosfera brumosa de um enredo ainda hoje circunvalado de um mistério quase invencível, não obstante o Fotógrafo ter sido convidado a dar sua versão do horror de Mauthausen quando do julgamento dos sequazes de Hitler em Nuremberg, entre 20 de novembro de 1945 e 1º de outubro de 1946, o único cidadão ibérico a receber tal honraria.

Francesc Boix sobreviveu a Mauthausen e, contudo, Mauthausen ainda o perseguiu, e de uma maneira contra a qual reações verdadeiramente frutuosas estavam fora de seu alcance. Padecendo da série de moléstias que adquirira no cárcere, Boix morreu cinco anos depois de Nuremberg, em 7 de julho de 1951, um mês antes de completar 31 anos. Seu corpo foi inumado nos subúrbios de Paris, numa cerimônia modesta, sem que nunca mais tivesse reencontrado a família. Graças a seus cliques, o mundo tem uma ideia do que pode se tornar o desejo de refazer a humanidade, quando só respeitar o homem e sua natureza, plural e única, é o bastante para qualquer evolução.


Filme: O Fotógrafo de Mauthausen
Direção: Mar Targarona
Ano: 2018
Gêneros: Drama/Thriller
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.