Este texto é um despropósito. A “Ilíada”, de Homero, certamente não precisa de apresentações, muito menos de uma chamada publicitária para convencer as pessoas a “darem uma chance”. A verdade é que o tempo vai passar, a Terra será engolida pelo Sol, a humanidade construirá casas de veraneio em Marte e, ainda assim, será possível escutar em algum rincão da galáxia, uma alma declamando: “Canta, ó Deusa, a cólera de Aquiles, o Pelida”. A despeito disso, desejo aqui dizer algumas palavras sobre a epopeia homérica e sobre o benefício que sua leitura invariavelmente traz ao habitante deste século.
A “Ilíada” — livro de cabeceira de Alexandre, o Grande — possui um enredo singelo. Os eventos descritos por Homero se passam no último ano (de um total de 9) do cerco dos gregos (também chamados de “aqueus”, argivos e “dânaos”) a Ílion (Troia), cidade que corresponde hoje ao sítio arqueológico turco de Hisarlik, no extremo noroeste da Anatólia.
Em resumo, é o seguinte: Páris, príncipe troiano, seduz e leva Helena, mulher do rei Menelau de Esparta, para Ílion. Indignado, o rei pede ajuda ao seu irmão, o rei Agamêmnon de Micenas. Ele aceita e convoca para a empreitada os príncipes aqueus que lhe deviam lealdade. Os gregos partem então para Ílion, sob o seu comando. Ao longo de 9 anos, os aqueus conquistam e pilham diversas cidades ao redor de Ílion, com destaque para a impressionante atuação militar do herói Aquiles.
O primeiro canto da “Ilíada” narra uma desavença entre Aquiles e Agamêmnon. Após ver-se obrigado a devolver a sacerdotisa Criseida (que havia sito tomada como butim durante uma conquista militar) à sua família para apaziguar a ira de Apolo, o rei micênico resolve tomar para si Briseida, espólio de guerra atribuído a Aquiles. Consumido pela cólera, o herói deixa de lutar e retira suas tropas — os “mirmidões” — do campo de batalha. Com a sua ausência, presenciamos, no decorrer da epopeia, uma sucessão de vitórias dos troianos, sob o comando de Heitor. Desesperado, Agamêmnon envia Ulisses, Fênix e Ájax para convencerem Aquiles a retornar. Mas o herói os repele (é aí que começa sua tragédia).
Em dado momento, para socorrer os aqueus, Aquiles autoriza Pátroclo, seu companheiro de guerra e amante, a guerrear utilizando sua armadura. Em seguida, Pátroclo é morto em combate por Heitor. Tomado pelo sentimento de vingança, Aquiles retorna à guerra e mata Heitor; não satisfeito, mutila seu cadáver, o que horroriza até mesmo os deuses. Inspirado por eles, o rei Príamo, pai de Heitor, se dirige ao acampamento grego e roga a Aquiles que lhe permita dar um funeral descente ao filho. O herói acede, sendo decretada uma trégua para o seu funeral. E assim termina a “Ilíada”. Os leitores, porém, são deixados com a certeza de que a morte de Aquiles e a destruição de Ílion estão no horizonte.
O fim de Troia (ou Ílion) não é o motivo do poema, mas o fio condutor pelo qual Homero unifica episódios diversos, da cólera de Aquiles até a morte de Heitor. O “páthos” heroico da “Ilíada” é que é a grande mensagem de Homero. A ideia de “areté”, isto é, de virtude (não no sentido estritamente moral, mas no de uma nobreza cavaleiresca) é o que permeia o épico do começo ao fim. Segundo Werner Jaeger: “A ‘Ilíada’ fala-nos de um mundo situado num tempo em que domina exclusivamente o espírito heroico de “areté”, e corporifica esse ideal em todos os seus heróis”. Por causa disso, a “Ilíada” tinha um aspecto eminentemente pedagógico para o homem grego antigo, servindo-lhe como bússola moral ou código de conduta.
Nesse sentido, vale lembrar da observação de Otto Maria Carpeaux: “‘A Ilíada’ e a ‘Odisseia’ eram usadas, nas escolas gregas, como livros didáticos; não da maneira como nós outros fazemos ler aos meninos algumas grandes obras de poesia para educar-lhes o gosto literário; mas sim da maneira como se aprende de cor um catecismo”. E conclui: “Para nós outros, Homero não pode ser outra coisa senão símbolo de uma grande obra literária, puramente literária e capaz de ser discutida”.
Assim, é claro que a “Ilíada” perdeu o seu caráter de código de conduta, mas continua sendo, sem dúvida, esse monumento literário que exerceu e exerce profunda influência sobre a literatura ocidental. A esse respeito, de acordo com o filólogo inglês Peter Jones: “Na primeira obra da literatura ocidental, encontramos economia de ação e escopo bem definidos combinados com uma amplitude de visão que, desde então, ditam os rumos da literatura narrativa”. Além disso, é uma obra que nos fornece a chave de acesso para a civilização grega, fonte da qual o Ocidente não se cansou de beber. O leitor que percorre seriamente os 25 cantos da “Ilíada” não sai ileso, deixa a leitura com toda uma constelação de nomes, frases, fatos e lugares da cultura grega na memória.
Desejo falar sobre o benefício específico que a “Ilíada” traz ao leitor moderno. Antes, porém, peço licença para dizer algumas palavras sobre o nosso século 21, essa era tão acelerada (desculpem o truísmo). Imaginem a cena: você abre o celular para se distrair, uma decisão já tão automática quanto piscar os olhos.
Sem nenhum motivo particular, você acessa o “TikTok” e se depara com o vídeo de um indiano atirando doses dantescas de pimenta sobre uma carne ignota dentro de uma panela suja; rola para baixo e descobre uma mulher num biquíni dourado quase quebrando o pescoço ao pular de um barco em movimento. Passa para o próximo vídeo; agora, um operário chinês pinta faixas de pedestre com uma precisão euclidiana. Continua rolando. Dois carros sofrem uma colisão brutal num cruzamento em Moscou. Um cachorro rosna cada vez que o dono pronuncia “Donald Trump”. Uma criança dança funk no meio de um shopping em Itaquera (uma parte dos comentários ovaciona; a outra, condena). Um homem alto e barbudo promete “destravar a mente para a riqueza” (só é necessário acessar o link que dá acesso ao seu curso pago no primeiro comentário fixado).
Do alto de um púlpito, um reverendo americano clama aos jovens que parem de assistir pornografia. Ao som de Shakira, são reprisados os gols de Messi no final da copa do Qatar. Um motoboy tentando empinar a moto é enquadrado pela Rota. Um homem aborda moradores de rua e pergunta se preferem uma marmita ou uma garrafa de cachaça (a maioria escolhe a cachaça). Um grupo de ciclistas nus pedala pelas ruas de Berlim durante uma campanha de conscientização do câncer de pele. Um barbeiro turco faz uma massagem tradicional na cabeça de um cliente estrangeiro… Sua vista começa a cansar, o pescoço dói. Você experimenta um brutal desequilíbrio dopaminérgico, acompanhado de um aumento dos níveis de cortisol, o hormônio do estresse. Num lampejo de lucidez — consciente de que isso tudo é uma espécie de lobotomia autoimposta —, você larga o celular. Apesar disso, sabe que pegará ele novamente em quinze minutos.
Como é possível apreciar verdadeiramente uma obra de arte literária, enquanto se vive no meio desse fluxo caótico de informações que tem como objetivo identificar padrões de consumo? Camille Paglia oferece uma resposta: “Os olhos são assaltados, coagidos, dessensibilizados. O único caminho para a liberdade é a educação de si mesmo para a arte”.
E, voltando ao que eu dizia antes, é precisamente esse o benefício que a leitura da “Ilíada” traz. Seus 15.693 hexâmetros não aceitam desaforo, não toleram uma leitura passiva, preguiçosa, daquelas dignas de uma receita de yakissoba. Afinal, estamos falando de um épico do século 8 a.C.; para enfrentá-lo, é preciso estar disposto a embarcar na nau dos aqueus rumo a Ílion. A identificar, em cada canto, quem é que está falando, homem ou deus. A se perder em dicionários e tomos de história grega — o que, com uma conexão Wi-Fi, se resume a alguns cliques —, para descobrir o significado das milhares de referências mitológicas que povoam o texto homérico.
Assim, nesse trabalho incessante que a “Ilíada” convida o leitor moderno a fazer, revela-se todo um universo. Descobre-se que Aquiles é chamado de “Pelida”, porque é filho do rei de Ftia, Peleu. Que, da mesma forma, Agamenon, o tirânico rei de Micenas, e Menelau, rei de Esparta, são chamados de “Atridas”, porque são filhos do lendário rei micênico Atreu. Que Apolo é chamado de “Esminteu” (caçador de ratos), porque, segunda a lenda, libertou a terra de uma invasão de ratos. Que “hecatombe” significa literalmente o sacrifício de cem bois. Que Briareu é um dos três centímanos, gigantes com cem braços e cinquenta cabeças. Que Pátroco, amante e companheiro de guerra de Aquiles, foi parar na corte do rei Peleu, porque, quando criança, havia assassinado Clisónimo na cidade de Opunte, sendo obrigado a fugir para Ftia. E assim por diante.
O leitor da “Ilíada” aprende que a verdadeira apreciação artística pressupõe uma concentração “desinteressada”, porque aquilo não se reverterá em dinheiro, em sucesso, em CLT, em aposentadoria por tempo de serviço… É o tipo de leitura que, se o seu tio descobrir, ai de você! Dirá que é perda tempo e que você ganharia mais estudando para o concurso da Prefeitura de Diadema. Mas é inegável: a leitura de uma epopeia, mais do que qualquer outra, ensina o que é contemplação. Aquele que realmente vivencia o texto homérico reabilita o próprio espírito a desenvolver uma relação profunda com obras de Arte (essa mesma com “a” maiúsculo), uma habilidade em extinção no século 21. Resgatando essa capacidade, ele desenvolve a própria individualidade, pois é pela Arte — em sentido amplo — que se aprende os meios de se expressar. Ele consegue, assim, a cada página, escapar da aceleração. Deixa a condição de usuário e passa a ser um intérprete.